Memória de Minhas Putas Tristes, Gabriel García Márquez

Livros ganham um ponto extra comigo quando, só ao terminá-lo, me dou conta que o personagem ao redor do qual tudo se passou sequer recebeu um nome. Ter um nome, nesses casos especiais, não faz diferença ─ o protagonista não é menos completo sem um. Ao mesmo tempo, me desperta um sentimento curioso quando, terminado um livro, não tenho muito bem uma opinião formada sobre ele. Tudo bem, o livro é bom, mas... celebramos a velhice ou a condenamos? Saudamos a loucura ou a lucidez? Ambas as coisas acontecem em Memória de minhas putas tristes. Talvez eu precise de mais uma visita às memórias do nosso sem-nome para esclarecer meus pensamentos.

Memória de Minhas Putas Tristes não é o livro mais famoso de Gabriel García Márquez, Prêmio Nobel de Literatura e autor do aclamado Cem Anos de Solidão, mas, lançado em 2004, marca o seu retorno depois de dez anos sem escrever um romance. A história não é longa; na tradução brasileira, que por sinal foi muito bem feita por Eric Nepomuceno, são 127 páginas de uma sensibilidade incrível. Traz à tona o envelhecimento, a solidão, a lucidez, a loucura, um amor inesperado.

O narrador é um culto jornalista aposentado, que ainda escreve suas crônicas dominicais para o El Diario de La Paz ─ do qual é um dos fundadores ─, com o luxo de poder fazê-lo de sua própria casa. Embora seja recebido com festa e presentes na redação do jornal quando completa seu nonagésimo aniversário, nosso amante das artes e da música vive uma vida de solidão. Em sua casa estilo colonial herdada da mãe, com os bolsos vazios, se rende à rotina: às sextas-feiras, organiza sua escrivaninha e, à pena e tinteiro, escreve seu texto para o jornal. Assiste seus concertos eruditos. Tira o pó de seus livros. Dá um passeio quando o clima lhe convém. Arruma novamente a escrivaninha. E, então, nos conta suas memórias.

"No ano de meus noventa anos quis me dar de presente uma noite de amor louco com uma adolescente virgem. Lembrei de Rosa Cobarcas, a dona de uma casa clandestina que constumava avisar aos seus bons clientes quando tinha alguma novidade disponível. Nunca sucumbi a essa e a nenhuma de suas muitas tentações obscenas, mas ela não acreditava na pureza de meus princípios. Também a moral é uma questão de tempo, dizia com sorriso maligno, você vai ver."

Na ocasião de seus noventa anos, o dono dessas memórias resolveu dar a si mesmo um presente mais caliente. Muitos anos antes, no auge de sua virilidade, os bordéis eram um ambiente que visitava com frequência, onde comprava seus amores descartáveis. Amores de verdade, em sua vida, não nos parece ter havido algum. Mas, para lembrar os velhos tempos, e talvez para afastar um pouco a solidão, o narrador decide se aventurar novamente. Mas não uma aventura sexual qualquer: exige uma adolescente virgem.

Rosa Cobarcas consegue às pressas realizar seu desejo. A menina em questão, no entanto, trabalha duro pregando botões o dia inteiro e, àquela hora da noite, encontrava-se sempre esgotada. Quando o nosso protagonista chega e se depara com seu corpo jovial e nú estirado na cama, em um sono profundo, não tem coragem de acordá-la. Tudo o que faz é admirar e acariciar os traços adolescentes da menina, deitar ao lado dela e observar sua respiração. Não demora muito para que ele, pela primeira vez na vida, com noventa anos recém-completados, se veja apaixonado pela criança de 14 anos que se deita ao seu lado.

Os encontros se repetem por incontáveis noites. Ela sempre está dormindo. Ele nunca a acorda. Ele a ama cada vez mais, e de uma forma singular. O que era para ser uma noite de aniversário um pouco mais apimentada acaba mudando o sentido da vida do narrador, já em sua suposta reta final. E isso o faz redescobrir-se. Acaba com uma concepção consternada de que a velhice é apenas um estado passivo. Dela ninguém se livra, mas pode tornar-se um tempo de redescobrimentos. Pode dar novo sentido a tudo o que foi vivido e inspirar a ponto de mudar totalmente o tema de seus textos dominicais no El Diario de La Paz, que passam a fazer cada vez mais sucesso entre o público apaixonado.

A partir daí somos envolvidos pelos sentimentos e angústias do narrador em relação à impensada situação: a descoberta do amor a essa altura da vida, o amor por uma adolescente adormecida. A trama se desenrola com outros imprevistos que o angustiam ainda mais. Há uma sutileza na obra que não sei bem definir. Mas tem a ver com o clima de solidão que trasmite, com as descrições das cenas ─ e dos corpos ─, com a irrelevância de dar nomes aos personagens, com a descoberta do amor nove décadas depois. E com as peculiaridades desse sentimento.

Como disse no início do texto, não sei bem o que isso significa. Estamos encantados com uma velhice marcada por novas possibilidades ou estamos angustiados com uma vida vivida sem amor? Estamos arrebatados pela forma sutil como ele ama aquela criança ou estamos angustiados com o fato de a coitada mal conhecê-lo e ter uma vida de abuso? Trata-se de beleza ou... de morbidez?

Não fosse a concordância cuidadosa do título, me perguntaria quem seriam tristes: as memórias ou as putas. Tenho certeza que não saberia dizer. Mas se as putas são as tristes, então talvez o dono das memórias esteja satisfeito com elas. Os motivos da satisfação fogem ao meu juízo. Sinto que se lesse dez vezes o livro, de dez formas diferentes eu veria o velho jornalista, e dez diferentes pretenções emprestaria a García Márquez.

"É que estou ficando velho, disse a ela. Já ficamos, superou ela. Acontece que a gente não sente por dentro, mas de fora todo mundo vê."

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