Cinco poemas de Manoel de Barros





Manoel de Barros recebeu, já no fim de sua vida, a grande homenagem através da publicação de sua “Poesia Completa” em 2013, vindo a falecer em 2014, depois de ter escrito a intervalos irregulares desde 1937. Sua obra é repleta de lirismo e de linguagem coloquial, utilizada no meio rural e transformada em poesia pela habilidade comum a Manoel de Barros e outros autores como Adélia Prado.

O que mais chama a atenção na obra de Manoel de Barros é justamente a habilidade de utilizar a linguagem até o limite possível sem perder com isso a coerência e a graça. São inúmeros neologismos (pelos quais sou particularmente apaixonado) e diversos recursos da língua comum utilizados para tornar crível e intimista aquilo que o poeta pretende.

Por isso, numa singela homenagem ao poeta, muitas vezes chamado de "Guimarães Rosa da poesia", selecionamos cinco de seus poemas mais marcantes para, ao mesmo tempo, aproveitar por alguns minutos a vivacidade e profundidade da poesia de Manoel de Barros e realizar a difícil tarefa de escolher pouco de uma obra que sempre representará o “muito”.

--- Cabeludinho ---
1.
Sob o canto do bate-num-quara nasceu Cabeludinho
bem diferente de Iracema
desandando pouquíssima poesia
o que desculpa a insuficiência do canto
mas explica a sua vida
que juro ser o essencial

— Vai desremelar esse olho, menino!
— Vai cortar esse cabelão, menino!
Eram os gritos de Nhanhá.
(...)

10.
Pela rua deserta atravessa um bêbado comprido
e oscilante
como bambu
assobiando...

Ao longo das calçadas algumas famílias
ainda conversam
velhas passam fumo nos dentes mexericando...
Nhanhá está aborrecida com o neto que foi estudar
no Rio
e voltou de ateu
— Se é pra disaprender, não precisa mais estudar

Pasta um cavalo solto no fim escuro da rua
O rio calmo lá embaixo pisca luzes de lanchas
acordadas
Nhanhá choraminga:
— Tá perdido, diz que negro é igual com branco!

--- Matéria de Poesia ---
1.
Todas as coisas cujos valores podem ser
disputados no cuspe à distância
servem para a poesia

O homem que possui um pente
e uma árvore
serve para poesia

Terreno de 10x20, sujo de mato – os que
nele gorjeiam: detritos semoventes, latas
servem para poesia

Um chevrolé gosmento 
Coleção de besouros abstêmios 
O bule de Braque sem boca
são bons para poesia

As coisas que não levam a nada
têm grande importância

Cada coisa ordinária é um elemento de estima

Cada coisa sem préstimo
tem seu lugar
na poesia ou na geral

O que se encontra em ninho de joão-ferreira :
caco de vidro, garampos,
retratos de formatura,
servem demais para poesia

As coisas que não pretendem, como
por exemplo: pedras que cheiram
água, homens
que atravessam períodos de árvore,
se prestam para poesia

Tudo aquilo que nos leva a coisa nenhuma
e que você não pode vender no mercado
como, por exemplo, o coração verde
dos pássaros,
serve para poesia

As coisas que os líquenes comem
- sapatos, adjetivos -
tem muita importância para os pulmões 
da poesia

Tudo aquilo que a nossa
civilização rejeita, pisa e mija em cima,
serve para poesia

Os loucos de água e estandarte 
servem demais 
O traste é ótimo 
O pobre – diabo é colosso

Tudo que explique
o alicate cremoso
e o lodo das estrelas 
serve demais da conta

Pessoas desimportantes 
dão para poesia 
qualquer pessoa ou escada

Tudo que explique 
a lagartixa de esteira
e a laminação de sabiás 
é muito importante para a poesia

O que é bom para o lixo é bom para poesia

Importante sobremaneira é a palavra repositório;
a palavra repositório eu conheço bem:
tem muitas repercussões 
como um algibe entupido de silêncio 
sabe a destroços

As coisas jogadas fora
têm grande importância 
- como um homem jogado fora

Aliás é também objeto de poesia
saber qual o período médio
que um homem jogado fora
pode permanecer na terra sem nascerem
em sua boca as raízes da escória

As coisas sem importância são bens de poesia

Pois é assim que um chevrolé gosmento chega
ao poema, e as andorinhas de junho.

2.
Muito coisa se poderia fazer em favor da poesia:

a — Esfregar pedras na paisagem.
b — Perder a inteligência das coisas para vê-las. (Colhida em Rimbaud)
c — Esconder-se por trás das palavras para mostrar-se.
d — Mesmo sem fome, comer as botas. O resto em Carlitos.
e — Perguntar distraído: — O que há de você na água?
f — Não usar colarinho duro. A fala de furnas brenhentas de Mário-pega-sapo era nua. Por isso as crianças e as putas do jardim o entendiam.
g — Nos versos mais transparentes enfiar pregos sujos, teréns de rua e de música, cisco de olho, moscas
de pensão...
h — Aprender a capinar com enxada cega.
i — Nos dias de lazer, compor um muro podre para caramujos
j — Deixar os substantivos passarem anos no esterco, deitados de barriga, até que eles possam carrear para o poema um gosto de chão - como cabelos desfeitos no chão — ou como o bule e Braque — áspero de ferrugem, mistura de azuis e ouro — um amarelo grosso de ouro da terra, carvão de folhas.
l — Jogar pedrinhas nim moscas...

3. 
Então - os meninos descobriram que amor
Que amor com amor
Que um homem riachoso escutava os sapos
E o vento abria o lodo dos pássaros

Um garoto emendava uma casa na outra com urina
Outros sabiam a chuvas. E os cupins
Comiam pernas de armário, amplificadores, ligas
religiosas...

Atrás de um banheiro de tábuas a poesia
Tirava as calcinhas pra eles
Ficavam de um pé só para as palavras - 
A boca apodrecendo para a vida!

De tarde
Desenterraram de dentro do capinzal 
Um braço do rio. Já estava com cheiro.
Grilos atarraxados no brejo pediam socorro.

De toalha no pescoço e anzol no peixe
Eles foram andando...
Botavam meias-solas nas paisagens
E acendiam estrelas com lenha molhada.

Acharam no roseiral um boi aberto por borboletas
Foi bom.
Viram casos de ostras em canetas
E ajudaram as aves na arrumação dos corgos

A todo momento eles davam com a rã nas calças
Cada um com a sua escova
E seu lado de dentro. Apreciavam
Desamarrar os cachorros com lingüiça.

À margem das estradas
Secavam palavras no sol como os lagartos
Passavam brilhantina nos bezerros. E
Transportavam lábios de caminhão...

Nunca poucos fizeram tantos de pinico!
Só iam pra casa de lado - com uma pessoa 
Que tem cobra no bolso.
E para cada mão - os cinco dedos de palha.

--- O livro de Bernardo ---
1
Os meninos me letram de Bandarra.
(Bandarra é cavalo velho solto
no pasto, às moscas.)
Esse é meu estandarte.

2
Não tenho pensa.
Tenho só árvores ventos
passarinhos – issos.

3
Dentro de mim
eu me eremito
como os padres do ermo.

4
Meus caminhos
a garça
redime.

5
Sou aquele
que gastou a sua história
na beira de um rio.

6
Estes brejos amanhecem
amarrados
de conchas.

7
A voz dos sapos de tarde
é destroncada
por dentro.

8
O sol transborda
nas estradas
e no olhar das sariemas.

9
Ao lado de uma lara
de uma pedra
estou conforme.

10
Passarinhos do mato
gostam de mim
e de goiaba.

11
Cavalos entardecem
na beira do mato – 
onde entardeço.

12
Uma rã me benzeu
com as mãos
na água.

13
Caramujos sempre chegam depois.
Representa que estão chegando
da eternidade.

14
Meu desagero
é de ser
fascinado por trastes.

15
O silêncio
está úmido
de aves.

16
Registros de lagartixas
nas ruínas:
elas têm sabimentos de pedras.

17
Vi o verão
no meio das pedras
e um lagarto.

18
A chuva
azula a voz
das andorinhas

19
Eternidade
é palavra
encostada em
Deus.

20
Águas que sabem
a pedras
sabem a rãs.

21
Sapos sabem divinamentos
mais do que as árvores
mais do que os homens.

22
O sangue do sol
nas águas
atrai mariposas.

23
Sou livre
para o silêncio das formas
e das cores.

24
Caracóis
não gosmam
em latas.

25
Ocupo função de exílio
quando anoitece
nas águas.

26
Passam formigas perdidas
no lado esquerdo
da casa.

27
No olho songo
do lagarto
nasce um pedaço de nuvem.

28
O corpo do rio prateia
quando a lua
se abre.

29
Na beira da mosca
o céu parou
o dia parou.

30
O dia estava
em condições de boca
para as borboletas.

31
O lírio
e as garças
são imaculantes.

32
Sou beato de águas
de pedras
e de aves.

33
De tarde
cigarras
arrebentavam o verão.

34
Dentro dos caramujos –
há silêncios
remontados.

35
Quem ornamenta o azul
das manhãs
são os sabiás.

36
Estou pousado em mim
igual que formiga
sem rumo.

37
Com fios de orvalho
aranhas tecem
a madrugada.

38
Eu vi que a noite dormia
escorada
nos arvoredos.

39
Andorinhas passeiam
na chuva
e no meu ocaso.

40
Quase vestida de sol
vi a chuva
em cima do morro.

41
Palavras
Gosto de brincar com elas
Tenho preguiça de ser sério.

42
Tenho candor
por bobagens
Quando eu crescer eu vou ficar criança.

43
Bom é
constar das paisagens
como um rio, uma pedra.

44
Meu requinte
é chegar às vilezas
com castidade.

45
Passarinho
faz árvore de tarde
nos andarilhos.

46
Poeta 
é uma pessoa
que reverdece nele mesmo.

47
Reconhecer a eminência
dos insetos
leva à sabedoria.

48
Pelo corpo
das latas podres
relvam rosas.

49
As garças
quando alçam
se entardecem.

50
Já me dei ao desfrute
de ser ao mesmo tempo
pedra e sapo.

51
Preciso de alcançar
a indulgência
pedral.

52
Uma açucena
me convidou
para de noite.

--- Línguas ---
Contenho vocação pra não saber línguas cultas.
Sou capaz de entender as abelhas do que alemão.
Eu domino os instintos primitivos.

A única língua que estudei com força foi a portuguesa.
Estudei-a com força para poder errá-la ao dente.
A língua dos índios Guatós é múrmura: é como se ao dentro de suas palavras corresse um rio entre pedras.

A língua dos Guaranis é gárrula: para eles é muito 
mais importante o rumor das palavras do que o sentido 
que elas tenham.
Usam trinados até na dor.

Na língua dos Guanás há sempre uma sombra do charco em que vivem.
Mas é língua matinal.
Há nos seus termos réstias de um sol infantil.

Entendo ainda o idioma inconversável das pedras.
É aquele idioma que melhor abrange o silêncio das 
palavras.

Sei também a linguagem dos pássaros – é só cantar.


--- Um filósofo de beco ---
Bola-sete é filósofo de beco.
Marimbondo faz casa no seu grenho - ele nem zine.
Eu queria fazer a biografia do orvalho - me disse.
E dos becos também.
É preciso refazer os becos, Senhor!
O beco é uma instituição que une o escuro do homem
com a indigência do lugar.
O beco é um lugar que eleva o homem até o seu melhor aniquilamento.
Um anspeçada, amigo meu, de aspecto moscal, só encontrou a salvação nos becos.
Antoninha-me-leva era Eminência nos becos de Corumbá.
Senhor, quem encherá os bolsos de guimbas, de tampinhas de cerveja, de vidrinhos de guardar moscas - senão os tontos de beco?
E quem levará para casa todos os dias de tarde a mesma solidão - senão os doidos de beco?
(Algum doido de beco me descende?)

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