Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis



"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas"


Brás Cubas é um homem velho, rico, solteiro e... morto. Neste momento, no pós-morte, resolve se dedicar à tarefa de narrar sua vida. Estando livre das amarras do tempo e espaço, emite opiniões e revela sua personalidade (algumas vezes cruel e infantil) não se preocupando com o julgamento dos vivos. A narrativa começa com sua infância, da qual registra apenas o contato com um amigo: Quincas Borba. O mesmo Quincas Borba que dará nome a outra das belíssimas obras de Machado de Assis. De sua juventude, Brás Cubas resgata o envolvimento com Marcela, sua desilusão e o término. Na vida adulta, que começa com seu retorno de uma temporada de estudos na Europa a história começa a tomar proporções psicológicas ainda mais densas.

Talvez um dos momentos mais marcantes na obra seja o evento que envolve a filha de Dona Eusébia, Eugênia, que é desprezada por Brás Cubas por ser manca:  "Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear: Não, senhor, sou coxa de nascença. (...) ‘Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?’". A imagem desta cena, revela toda canalhice de Brás Cubas, que se aproxima de Eugênia, ao perceber sua beleza, mas a recusa ao então notar que a bela é coxa, que manca. O recurso de narração de Machado de Assis, nessa obra, que é classificada como parte da sua segunda fase de escrita e compreendida segundo a divisão ortodoxa como “realismo”, demonstra a genialidade do autor que faz jus ao título de maior nome da literatura nacional. Memórias póstumas rompe com a tradicional narração linear e dá início ao realismo brasileiro, apresentando elementos modernistas e de realismo mágico.

Brás Cubas não teme demonstrar sua visão cética e de desprezo para com o mundo, dirigindo sua crítica ao gênero humano, transforma o próprio leitor (e devo destacar que o faz com maestria) em uma das vítimas de sua ironia. A leitura do romance deve levar em conta, porém, que existe uma dupla condição do protagonista, encontram-se narrando o Brás morto e o Brás vivo que é narrado por seu eu falecido. O Brás vivo é um personagem da narrativa e vive cercado pelas futilidades sociais, pela volubilidade sentimental e pelo desprezo velado, (às vezes não tão velado), que manifesta pelos demais. O Brás morto é o narrador colocado de fora das limitações físicas, é capaz de expor seus próprios defeitos, preconceitos e idiossincrasias, afinal já está morto e não pode mais ser atingido pela ira de amigos, conhecidos e amantes. Mas, acima de tudo, por estar no “lugar ideal” para compreender que seu modo de agir é semelhante ao dos seres humanos mais ordinários. 

Na sequência da narrativa o Brás Cubas vivo se envolve com Virgília, uma namorada de sua juventude que, apesar de casada, se torna sua amada e amante. O adultério perdura muitos anos e se desfaz de maneira fria e pasteurizada. É um termino mais político que afetivo, e com isso Brás se aproxima de Nhã Loló, que é parenta de seu cunhado Cotrim, mas a jovem falece, interrompendo o projeto de casamento.  Desse momento até o fim da vida, Brás se dedica a uma carreira política que mostra sua completa falta de talento para a área. Mesmo quando faz uma ação beneficente, pratica sem nenhuma paixão (aos moldes roboticamente kantianos – crítica minha). O arremate da história não poderia ser menos melancólico que a própria existência de Brás Cubas, que, nas últimas linhas diz: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.

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