Belfagor, o Arquidiabo, Nicolau Maquiavel



Belfagor é um Arquidiabo, um demônio que deve obediência mas goza de certa elevação social nas cortes infernais. Sua missão na terra é fazer uma espécie de laboratório sobre o matrimônio. Dificilmente alguém pensaria que um personagem tão prosaico pertencesse ao autor d’O Príncipe: Nicolau Maquiavel.

Maquiavel foi uma figura polêmica em seu tempo, e este texto teatral* que, tanto quanto seu famoso O Príncipe causou (e ainda causa) uma profunda discussão, é repleto de questões sobre a forma como a sociedade funcionava e serve-nos especialmente para compreender a situação da mulher da época.

"Embora assumisse com certa má vontade essa missão, obrigado, contudo, por ordens de Plutão, Belfagor se dispôs a seguir quanto havia sido determinado pela assembléia e a se submeter às condições que haviam sido solenemente estabelecidas por todos. E as condições eram as seguintes: que imediatamente fosse entregue àquele que fosse delegado para essa missão e quantia de cem mil ducados; com esse dinheiro deveria vir ao mundo e, sob forma de homem, escolher uma mulher com quem se casar e viver com ela durante dez anos; depois, fingindo morrer, voltar ao inferno e, pela experiência adquirida, relatar a seus superiores quais eram os ônus e as inconveniências do matrimônio. Foi decidido ainda que, durante esse período, ele estaria sujeito a todas as dificuldades e a todos os males que afligem os homens e que deveria enfrentar a pobreza, as prisões, a doença e todos os demais infortúnios em que os homens incorrem, podendo deles liberar-se unicamente com arte ou astúcia."

Há uma clara defesa da liberdade, da destruição ou ao menos relativização dos costumes e especialmente do casamento como era consolidado. É o tipo de narrativa que exige vinte minutos de leitura e vinte horas de debate, questões e argumentações.

A missão do demônio na terra é, como dito, fazer um laboratório, isso atualizando em termos contemporâneos. Em síntese, sua função é averiguar se de fato é o casamento que faz com que os homens acabem indo para o inferno. O fim do conto é assustadoramente machista e, ainda que a ironia e total consciência de que os costumes sociais são relativizados ao extremo seja uma constante, o tom e a visão sobre o feminino chega a ser digna de pena.

Apesar dessa questão, e mesmo de outras que não mencionarei, acredito ser possível apreciar a escrita e o conteúdo do livro. Primeiro porque a história é muito rápida; acontece numa sucessão muito dinâmica de eventos e o conto é finalizado em questão de minutos. Além do mais, a escrita de Maquiavel é muito sedutora. Ele sabe ser baixo e ao mesmo tempo brincar com a imaginação do leitor. Os personagens são sórdidos na medida certa, ninguém é um exemplo de retidão moral e menos ainda de total depravação. Todos são o que são, capazes de truques sujos quando o auto interesse está em questão, mas ao mesmo tempo não tomam iniciativas para serem maldosos gratuitamente.

O arquidiabo se disfarça de Dom Rodrigo de Castela chegando a Florença, onde se casa com a jovem de nome Honesta (veja aí uma crítica nada velada à virtude da honestidade e especialmente aos ensinamentos monásticos), que acaba tornando sua vida na terra pior do que era no inferno. Ele acaba se afundando em dívidas e, para fugir da ingrata missão, conta com a ajuda do camponês Giovanni. Após a fuga, ele fica devendo ao camponês ajuda e grande recompensa, que acabam sendo a causa e o desfecho da história.

Vou evitar contar algo sobre o final, pois ele (apesar de todas as questões mencionadas) merece a leitura. Vale a pena conhecer este lado mais criativo de Maquiavel e observar como a crítica social que ele produz sobre seu tempo ainda tem muita relevância nos nossos dias.

* O texto é teatral, foi encenado no teatro, mas muitos o consideram um conto, afinal é um livro curto e muitíssimo rápido nos eventos que narra.

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