Neuromancer, William Gibson



De tempos em tempos, sem quaisquer promessas, surgem livros com uma qualidade muito rara: eles expandem o horizonte da literatura. A ficção científica tem sua matriz na mesclagem entre a literatura fantástica, gótica e científica, sendo esta última vertente a mais expressiva. A ciência permeia todas as linhas do texto sci-fi; de Voltaire a Júlio Verne, a ficção científica, como a própria ciência, está em constante mutação e uma das últimas expansões mais significativas surgiu no ano de 1984, cujo alicerce está no intenso contraste entre a alta tecnologia e a baixa qualidade de vida. Numa analogia irônica, Neuromancer é sobre a vida humana atrelada à máquina, mas, mais do que isso, é sobre uma dependência que beira ao vício. O homem não está sob o domínio de um governo totalitário como no romance 1984 de George Orwell, mas sob o domínio de sua própria manifestação e criação: a ciência. Como uma obra-prima, Neuromancer transcendeu e se tornou um marco na cultura pop, onde sua influência ecoa fortemente até os dias atuais. Não a toa, o livro de William Gibson é considerado um dos melhores romances do século XX e vencedor dos principais prêmios da ficção científica.
“Cyberespaço. Uma alucinação consensual vivida diariamente por bilhões de operadores autorizados, em todas as nações, por crianças aprendendo altos conceitos matemáticos... Uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de dados de todos os computadores do sistema humano. Uma complexidade impensável. Linhas de luz abrangendo o não-espaço da mente; nebulosas e constelações infindáveis de dados. Como marés de luzes da cidade." (2003, p. 67)
Case é um ex-cowboy (ou ex-hacker) que, após tentar roubar seus chefes, sofreu uma intoxicação que o impossibilitou de se conectar à matrix (o cyberespaço). Marginalizado em Chiba City, ele é encontrado por Molly, uma samurai das ruas, que o recruta a trabalhar para um chefe desconhecido, sendo guiados por Armitage, um intermediário, que oferece-o uma recuperação completa em troca de um trabalho misterioso. A partir daí, somos levados ao mundo do Sprawl numa viagem caleidoscópica cujo cenário é um aglomerado urbano obscuro, recheado de prédios altíssimos, tecnologia de ponta, mercados negros, cyborgs, degradação social e máquinas por todos os lugares. Devido às diversas modificações corporais, não é claro o quão máquinas são os humanos do Sprawl (ou o quão humanas são as máquinas). O real, o virtual e o imaginário se confundem e o próprio leitor é um viajante na matrix. Não é raro a narrativa beirar ao onírico, ao surreal, uma verdadeira alucinação, como o cyberespaço se propõe a ser. Por isso Neuromancer não possui uma narrativa fácil e Gibson não faz questão de dar explicações, é preciso ter muita atenção. 

Como em Laranja Mecânica, Neuromancer possui uma linguagem própria recheada de neologismos. "Cyberespaço", "cyberpunk" e "matrix" podem ser palavras já inseridas no vocabulário urbano atual, mas elas surgiram, em primeira ou segunda instância, no Sprawl, no mundo de Neuromancer. Essa impressão de familiaridade que nós, leitores do século XXI, temos com os termos do cyberpunk se deve à cultura remanescente de Neuromancer que invadiu o mundo real (quer dizer, onde aparentemente estamos vivendo a realidade). O cyberpunk, muito além do subgênero literário fundado por Gibson, também é um estilo de vida. Surgiu da obra uma subcultura que viaja da moda à música. Roupas pretas, sujas, rasgadas e muito couro formam o guarda-roupas de um cyberpunker, em uma vida regada à alucinógenos e computação avançada, cuja trilha-sonora é formada por uma sonoridade ruidosa e intensa. Tais características citadas agora podem estar evocando em sua mente um grande símbolo cyberpunk atual: a trilogia Matrix dos irmãos Wachowski, que, não por acaso, tem em Neuromancer sua principal fonte.


Um romance importantíssimo, de fato, porém facilmente mal compreendido e subestimado. Neuromancer não é um livro para qualquer viajante perdido na literatura, mas é uma leitura necessária. Seus motivos refletiram o medo do homem, no século XX, de suas próprias criações, da própria ciência e o quanto essa ambição desenfreada custaria à vida humana. Neuromancer está ao lado de 1984, Laranja Mecânica, Fahrenheit 451 e Admirável Mundo Novo como as grandes distopias do século XX, mas não é raro encontrar o romance de Gibson subjugado por conta do preconceito existente à ficção científica. Esquecem-se, tais pessoas, que a ficção científica é a própria reflexão do homem sobre a ciência, sobre o papel dela na sociedade e em nosso cotidiano. Como no Sprawl, os cidadãos do século XXI, deste simulacro que vos falo, estão tão atrelados à tecnologia ao redor e aos seus micro-cyberespaços que Neuromancer pode soar como uma predição de nosso futuro. E não é um bom futuro. Quem pode nos garantir que não estamos dentro de grande alucinação coletiva? Afinal, quem pode dizer o que é real?
“Já não existe o espelho do ser e das aparências, do real e do seu conceito. Já não existe coextensividade imaginária; é a miniaturização genética que é a dimensão da simulação. O real é produzido a partir de células miniaturizadas, de matrizes e de memórias, de modelos de comando – e pode ser reproduzido um número indefinido de vezes a partir daí [...]. Já não se trata de imitação, nem de dobragem, nem mesmo de paródia. Trata-se de uma substituição no real dos signos do real, isto é, de uma operação máquina sinalética metaestável, programática, impecável, que oferece todos os signos do real e lhes curta-circuita todas as peripécias. O real nunca mais terá oportunidade de se produzir [...].” (BAUDRILLARD, Simulacro e Simulação, p. 8)
Notas sobre a edição: Para esta resenha utilizei a edição especial de 30 anos lançada recentemente pela editora Aleph, parceira do blog. Além do trabalho artístico impecável, a edição possui diversos extras que aprofundam ainda mais a experiência, contendo um prefácio do autor escrito especialmente para o público brasileiro, três contos inéditos no Brasil e ambientados no universo Sprawl: Johnny Mnemônico, Hotel New Rose e Queimando Cromo (o​s contos trazem personagens e eventos presentes no livro) e uma ​entrevista de Gibson concedida ao escritor e crítico literário Larry McCaffery​. Atualmente, a melhor e mais completa edição brasileira desta obra.

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