Fever Ray, Fever Ray


Em muitas andanças minhas pelo mundo da música encontrei muita coisa boa e memorável. Numa delas deparei-me com um álbum de sonoridade estranha. Demorei para digeri-lo talvez por imaturidade musical ou simplesmente porque eu não estava preparado para o álbum. No entanto, pouco tempo depois fui fisgado e após 6 anos de seu lançamento, o debut homônimo de Fever Ray se firma como um grande clássico da minha vida. 



Karin Elisabeth, ou Fever Ray, começou sua carreira ao lado do irmão no duo The Knife, construindo lá sua base musical. Em “Fever Ray” nota-se a herança com rapidez, porém desta vez numa construção mais íntima e minimalista. Como num resgate ao Kraftwerk, Karin buscou em seu disco trazer uma reflexão, fazendo surgir sentimentos e emoções sutis a partir de uma base quase que completamente eletrônica. O lírico permeia o cotidiano numa ótica interessante e melancólica. Há uma forte presença ambiental que torna o álbum uma grande experiência imaginativa. Karin nos confessa sobre amor, sobre solidão, sobre o passado ou sobre o futuro cuja intenção é aprofundar o cotidiano e o comum. Reflete-se aí uma ansiedade moderna: A vida, dominada pela rotina, torna-se cada vez mais automática, fazendo ser necessário buscar de volta o controle sobre o trivial. Em reflexão, Karin mescla com maestria o novo e o velho, o moderno e o ancestral. Sintetizadores misturam-se com ritmos tribais, com tambores indígenas. No meio disso, há duas Karins em disputa, aquela dominada pela cotidiano e aquela que tenta se libertar. A dualidade torna-se a peça central desse álbum. Duas vozes se fazem presentes, uma vívida e aberta, outra obscura e fechada. Duelando entre si numa sinfonia onde o soturno e o singelo estão perfeitamente alinhados; onde o futuro encontra o passado e fazem o presente. Karin discute consigo e com sua persona antagônica sobre quem são, quem foram e quem serão. A intimidade musical e lírica torna-se pura poesia.



Em conexão com sua música, há uma grande teatralidade na artista que transcende para fora do próprio álbum. Fever Ray quase sempre está mascarada, pálida e fantasmagórica, como uma forma humana que vaga sem domínio ou controle pela vida. Um espírito preso à existência humana, porém sem pertencê-la. Novamente a dualidade se faz presente, onde o cotidiano e a vivência humana moderna se tornam opressores, impedindo que haja a real liberdade de escolha, criando uma padronização inescapável. Seu espírito busca consolo então no ancestralismo, recorre à conexão orgânica com o mundo, à natureza e ao tribal.



O grande duelo culmina na faixa de encerramento do álbum, Coconut, onde a construção progressiva cresce em um jogo de sintetizadores cansados que aos poucos deixam-se dominar pelo ritmo do orgânico. Um pio de coruja constantemente repetido durante a faixa apresenta a simbologia da sabedoria, mas também da morte. Como se ao concluir seu pensamento desenvolvido durante o álbum, parte de seu "eu" morre para acordar em uma nova existência. Fever Ray então desperta de sua reflexão e unifica seu espírito ao corpo. As duas vozes, antes antagônicas, cantam juntas como uma só. Fever Ray encerra seu álbum concluindo sua reflexão de modo abstrato, mas muito poderoso. Serão necessárias muitas audições para sentir o álbum como ele deve ser sentido. Sem dúvidas, o debut de Fever Ray firma-se como um grande álbum eletrônico e um clássico moderno que figura merecidamente em várias listas de melhores dos anos 2000. Um encontro de duas sonoridades diferentes e distantes efetuado com grande maestria e sentimento. Um álbum necessário, moderno, profundo e corajoso. Um álbum para se ouvir com atenção.

1 comentários:

  1. Nossa, de longe a melhor resenha sobre esse álbum que já li. Também é um dos meus preferidos e eu sou completamente encantada por ele. Sua interpretação foi magnífica e me mostrou uma visão muito rica sobre essa obra. Parabéns!

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