O livro dos Abraços, Eduardo Galeano



“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovakloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Pai, me ajuda a olhar!”

Este trecho selecionado da obra de Galeano já mostra o tom, a temática e a profundidade que o autor alcança. “O livro dos abraços” é um destes textos raros, que dá pra ser lido em qualquer momento, dá pra abrir uma página aleatória e se surpreender com o pulsar de poucas linhas e muita intensidade. A obra é repleta de referências filosóficas e profundidade de reflexão e pensamento. Poucos autores conseguem extrapolar a vida ordinária e transformá-la em um emaranhado de sentimentos que podem ser descritos, coisa que normalmente se vive.

Vejam este exemplo:
O medo
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola. Ao meio-dia, abri a porta da gaiola.
Voltei pra casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.

Galeano está muito acima da auto-ajuda banal com a qual estamos acostumados, mas consegue ao mesmo tempo produzir ruídos em nossa mente que às vezes duram por semanas. Deixam uma questão, por trás, no fundo dos olhos, incomodando justamente para ser resolvida. Alguns de seus contos, historietas e versos são duros e mostram um desespero de viver e uma dor pela humanidade que assustam pela verdade e simplicidade.

O autor é reflexivo, simples e direto, sem com isso depender de clichês e jargões. Apresenta o que viveu, provou, rejeitou e aprovou, seja isso leve ou não.

O desafio
Não conseguiram nos transformar em eles – escreveu-me Cacho El Kadri
Eram os últimos tempos das ditaduras militares na Argentina e no Uruguai. Tínhamos comido medo no café-da-manhã, medo no almoço e no jantar, medo; mas não tinham conseguido nos transformar em eles.

Todas as suas obras seguem este tom mais intimista e ainda com pretensões e alcances universais. Lembro-me de um amigo dizer que ler "O Livro dos Abraços" era como fazer carinho na própria alma. Acho que a experiência é desse âmbito, é um afago existencial, uma narrativa que fala de uma verdade que não quer ser imposta, mas sentida.

Galeano faleceu em 2015, deixando mais de quarenta livros publicados e outros tantos no prelo, sua visão política e as polêmicas com as quais se envolveu são tão famosas quanto suas obras de literatura. Ao falar sobre o regime militar que seu país - o Uruguai - viveu, o autor diz o seguinte: "as pessoas estavam na cadeia para que os presos pudessem ser livres". Esta é a marca de Galeano; a observação aguda sobre a realidade, um olhar pontual e sem qualquer pudor.

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