Seja um bom fã: reconheça que é ruim.


Resolvi falar de um assunto muito polêmico, mas que ao mesmo tempo sofre de uma incompreensão assustadora. Parece paradoxal começar um texto dizendo que o assunto é polêmico e incompreendido, como pode algo ser polêmico (ou seja, ser fonte de discussão) e ao mesmo tempo ser incompreendido (ser desconhecido)? Bom, isso não só é possível como também comum, e a grande prova disso é a quantidade absurda dos famosos “textões” na internet e de especialistas em ciências ocultas, astrologia quântica, filosofia monocromática ou qualquer outra coisa inventada para soar erudita e que seja igualmente irrelevante.

Não estou procurando defender argumentos de autoridade, não quero insinuar que o espaço plural da internet deva ser restringido a pessoas com formação acadêmica comprovada ou qualquer coisa remotamente parecida com isso. O que estou fazendo aqui é justamente questionando (para não dizer criticando) a superioridade intelectual de muitos leitores. Minha pretensão é justamente relativizar uma tendência muito comum nos debates e “textões” online onde reina uma verdadeira cornucópia de argumentos vazios, mas maquiados de reflexivos, ataques baixos, disfarçados de “minha opinião” e acima de tudo uma defesa desesperada pelo gosto pessoal como se fosse proibido gostar de alguma coisa ruim.

Recentemente acompanhei uma briga (e vou chamar de briga e não de debate porque acho que debates implicam em argumentação razoável) cujo tema era o livro da Kefera. Todos os envolvidos marcavam seus lugares divididos em diversas trincheiras que ocasionalmente se confraternizavam quando tinham como objetivo comum atacar um trincheirado mais fraco. Entre indignação coletiva pelo fato de leitores investirem seu dinheiro no livro da youtuber e não gastarem com literatura clássica nacional, críticas pesadas ao fato da escritora ter conseguido sua fama através de vídeos superficiais e agora estar “tomando” o lugar de escritores melhores e, finalmente, para coroar a briga, um machismo mal disfarçado composto de: “não estou atacando a moça porque ela é mulher, estou atacando a moça porque ela não tem conteúdo”, percebi uma triste realidade entre leitores.

Antes de falar do que notei, gostaria de trazer mais exemplos, e dessa vez vou apontar um mais polêmico ainda: a saga Guerra dos Tronos. Eu devo admitir que não consegui passar do terceiro episódio da série televisiva, mas li todos os livros. Não acho que eles sejam ruins, não acho que eles sejam maravilhosos, não tenho certeza se atenderão as expectativas quando chegarem ao final e nem sei se devem atender a tais expectativas. Mas tem uma coisa que eu sei: a saga de livros não é genial. Ponto! Quer mais um exemplo? Harry Potter é livro pra crianças. Não é genial, não é obra de arte, não é literatura profunda e todos os livros do tipo: “Harry Potter e a administração de empresas” ou “Aprenda lições de liderança com Harry Potter” são bobagens retumbantes.

Mas vamos conversar com mais calma. Tudo isso não me faz um “hater”? Espero que não... O que acontece é o seguinte: o leitor x é apresentado ou descobre a obra y. Este leitor percebe que o livro lhe agradou, percebe que existem grupos na internet voltados unicamente para a glorificação deste livro e descobre que muitos leitores estão dispostos a conversar e a defender este livro em específico. Inevitavelmente, este leitor descobrirá que existem grupos cujo foco é fazer justamente o oposto: a ideia destes grupos é criticar e localizar as falhas mais marcantes do livro e esfrega-las na cara dos fãs. Acredito que este indivíduo possa ser chamado de “hater”, ele gasta seu tempo para odiar o que foi escrito, produzir memes, comparar dados, floodar grupos e etc.

Aparentemente temos dois problemas, mas sinceramente eu acho que temos um problema só. Normalmente o “odiador” do livro da Kéfera, ou de Crepúsculo, ou do que quer que seja, é aquele leitor apaixonado por Harry Potter, Guerra dos Tronos, Stephen King e cia. Podemos chamar este leitor de “leitor médio”. Qual o problema com este leitor? A falta de humildade intelectual e o excesso de arrogância literária. Este leitor se acha no direito de menosprezar os que gostam de literatura adolescente, ou pior, se acha no direito de listar regras para se ser um bom leitor. Mas aqui você poderia perguntar: não é exatamente isso que este texto está fazendo? E eu prazerosamente responderia: Não! Nem de longe.

O título deste texto é um tanto imperativo, mas seu conteúdo não é. Não quero dizer o que faz um bom ou um mau leitor, não farei uma lista de livros “indispensáveis” - essa lista existe e ela é minha e de mais ninguém. Eu posso compartilhar a minha lista, mas se ela for entendida como uma lista obrigatória, ela perde completamente o seu sentido. A literatura sempre foi o lugar do refúgio, o canto prazeroso no qual inúmeras pessoas ao longo da história puderam se esconder ou se ilhar para fugir ou refletir com calma sobre a existência. Ou mesmo para simplesmente queimar o tempo. Não existe um modus operandi da literatura, não existe uma exigência mínima para se tornar um leitor.

Tudo isso pode já ter respondido a provocação do título, “Seja um bom fã: admita que é ruim”. O leitor médio frequentemente se esquece que muito do que ele gosta passa pela subjetividade de gosto. Não estamos discutindo literatura clássica, ela é outra questão, com outros problemas e outras dificuldades. Nossa conversa é sobre literatura como a mencionada, aquela que depende imensamente do gosto particular para funcionar, aquela que é produto da indústria cultural. Obviamente existem níveis de complexidade e de qualidade de escrita dentro dessas obras. Não estou comparando O Senhor dos Anéis com Guerra dos Tronos, nem o livro da Kéfera com Harry Potter. Estou justamente criticando, e o faço abertamente, aqueles que consideram seus livros preferidos melhores que os outros, simplesmente pelo fato de serem seus livros preferidos.

King, Guerra dos Tronos, Harry Potter, Senhor dos Anéis, Crepúsculo, As Crônicas de Nárnia, Sidney Sheldon, Agatha Cristie e tantos outros livros e escritores são frutos e resultados da indústria cultural, uns em maior medida outros quase não o são. Alguns livros do Sidney Sheldon como “Se houver amanhã” e “A herdeira” são uma porcaria e ainda assim eu adoro. Releio quando posso, me divirto todas as vezes, do mesmo jeito que as vezes me divirto cantando alguma música da banda homônima da novela Rebelde. Era péssima, chega a agredir meus ouvidos nos dias em que estou mais exigente, mas eu adoro cantar junto e passar vergonha com o ritmo brega e a letra melosa. Talvez você, leitor, no auge de sua arrogância não tenha notado, mas muito do que você lê não é uma obra de arte, não é perfeito e sequer atende ao mínimo que outros leitores possam exigir.

Do mesmo jeito que eu acho Guerra dos Tronos raso, vendido, machista e forçosamente impactante, outro leitor pode localizar nas Crônicas de Nárnia outras características da mesma ordem. Eu não preciso deixar de gostar nem um pouco de Guerra dos Tronos ou das Crônicas de Nárnia por isso. Ambas as obras são um ótimo entretenimento e ambas atendem suas propostas. O livro da Kéfera faz exatamente a mesma coisa. Ele não possuiu pretensões acadêmicas, não está roubando lugar de ninguém, diverte muitas pessoas, ajuda muitas outras a começar a vida de leitores, relativiza alguns conceitos sociais cristalizados e é, ao mesmo tempo, raso, mal escrito, superficial e, em resumo: ruim.

Gostar de algo ruim não é crime, não merece castigo e você não é menos leitor por isso. Se você é apaixonado pela obra de Dostoievski, saiba que, de acordo com a filosofia estética kantiana, nenhum sentimento deve estar presente na contemplação da arte ou do belo, e saiba que são domínios diferentes, são coisas distintas. Em um outro texto falo das diferenças entre arte e literatura comum. Tudo que citei nos últimos parágrafos foi literatura comum e é somente sobre ela esse texto, sobre ela e sobre a incapacidade de alguns leitores de reconhecer que qualquer livro pode ser a porta de entrada para a literatura.

Lembrando os dizeres de uma amiga sobre as leis de união sobre casais do mesmo sexo eu parafraseio: um sistema que inclui mais gente é obviamente melhor que um outro que exclui algum grupo. Faça o paralelo com o tema e até a próxima.

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