Aslam, Tirian, Jesus e Moisés


Transcendência imagética e “fazer artístico” da sacralidade na obra de C.S. Lewis.

Este pequeno texto foi escrito em um momento em que me separava de certa parte da religião e me aproximava da filosofia. Ele pretende analisar algumas referências ao sagrado na obra de C.S. Lewis, “As Crônicas de Nárnia”, e como elas rementem às imagens e construções da bíblia cristã. A obra de Lewis é famosa e dispensa introdução, porém também utilizarei de certos pontos para clarear a interpretação em um viés estético, proposto por Luigi Pareyson, um filósofo e esteta italiano que compreende a arte como algo que não remete a ela mesma, mas a algo que está para além dela, e principalmente como algo com caráter de singularidade.

Um primeiro problema ao se analisar "As Crônicas de Nárnia", de C.S. Lewis, é a vastidão de indicações que o autor faz da bíblia cristã. Para tentar delimitar a questão, farei neste texto referência a pontos muito específicos da obra e pretendo apontar a quais passagens exatas da sagrada escritura elas remetem. Ficarei detido unicamente em duas referências; a primeira, que compreende o Mito da Criação do mundo e as extrapolações literárias de que Lewis faz uso, e a segunda de uma situação praticamente idêntica ao evento bíblico em que Moisés mata o egípcio para defender o escravo hebreu. Durante a análise, tentarei demonstrar como pode-se considerar a obra de Lewis singular mesmo com uma semelhança tão aparente. 

A própria obra de Luigi Pareyson compreende uma vastidão de temas que falam mais que a questão aqui proposta, e novamente me limitarei a um tema mais específico, para que possa fazer uma análise melhor detalhada. Tratarei aqui, então, de como podemos compreender esta obra de C.S. Lewis como uma produção artística que não está totalmente nela mesma, mas que remete a outra construção, que por sua vez se faz além de si mesma, a saber, a bíblia cristã, elucidando como suas narrativas existem muito mais no âmbito do “imaginário coletivo”, e suas próprias narrativas são por muitas vezes construídas e refletem outro significado dependendo da pessoa a quem elas chegam.

A Primeira Imagem – A Criação de Nárnia

O primeiro construto artístico que remete a uma figura bíblica é o momento da criação de Nárnia pela música. Aslam - que durante a obra faz algumas vezes o papel do deus criador e em outros momentos do Cristo sacrificial - começa um canto que não pode ser definido, e, por meio dele, a existência do mundo começa a surgir. Primeiramente, o céu com as estrelas e uma terra nua e sem vida e, quando começa a cantar, já existe algo físico, mas indescritível, onde os espectadores humanos de nosso mundo veem o processo criativo. 

No gênesis, lemos: “No principio, Deus criou o céu e a terra. A terra estava deserta e vazia, as trevas cobriam o abismo...”. Aqui nessa primeira citação bíblica, já podemos notar como ocorre um evento similar com a narrativa de Lewis, onde há sim uma semelhança, mas não uma cópia ou um recontar que se limita a repetir o fato. Existem também várias outras extrapolações que não aparecem no conto bíblico. 

O leão andava de um lado para o outro na terra nua, cantando a nova canção. Era mais suave e ritmada do que a canção com a qual convocara as estrelas e o sol; uma canção doce, sussurrante. À medida que caminhava o vale ia ficando verde de capim. [...] E surgiam outras coisas além da relva. As mais altas encostas iam ficando escuras de urzes. Manchas de um verde mais intenso apareciam no vale. [...] quando ficaram quase do seu tamanho, viu o que era: - São árvores! – exclamou. (C.S.Lewis 1950, p. 59)

Na teoria da formatividade de Pareyson existe um apelo à arte pensada de forma autotélica (fim em si mesma) e que remete à algo que está para além de si mesma. Seu fim não é unicamente apontar para algo, mas ela por muitas vezes realiza este papel, como se nota na criação de Nárnia, onde podemos por meio dela visualizar a criação do mundo bíblico e que por sua vez remete a algo mais importante: a necessidade de dar causa e origem ao mundo, que é própria do ser humano. Ou seja, o texto de Lewis remete a um segundo texto, que por sua vez é um reflexo do imaginário do homem, assim como toda construção artística.

Pareyson irá indicar que a arte não pode ter um fim especifico. Sua autenticidade e mesmo sua importância está em si mesma. O valor dela é inerente e remeter a algo além é meramente uma característica contingencial daquela arte. 

Enquanto produzia a obra, Lewis mantinha uma convivência muito próxima com o escritor J.R.R. Tolkien, autor de "O Silmarillion" e "O Senhor dos Anéis". Ambos narram nas obras citadas a criação do mundo pela música e pela voz ressonante de seus respectivos deuses. 

No gênesis, Deus cria os eventos no mundo pela voz, porém, ao contrário do que ocorre musicalmente na obra de Lewis, ele apenas diz para que eles ocorram, “Deus disse: ‘Faça-se a luz’! E a luz se fez.” Mas em ambos os casos o apelo é pela ação vocal dos deuses e pela resposta imediata que elas causam na existência, que elucidam a importância que o som representa no ideário humano, e como a formatividade de Pareyson pode ser compreendida. "É a ‘formatividade’, um certo modo de fazer que, enquanto faz, vai inventando o ‘modo’ de fazer: produção que é, ao mesmo tempo e indissoluvelmente, invenção”. Neste caso, a invenção é a construção da existência pela voz de Deus, ou pelo canto divino, que vai produzindo no momento em que é pronunciado. 

A obra de Lewis é, então, uma construção em terceira camada, pois é a narrativa da feitura do mundo que remete a bíblia sagrada, sendo a bíblia a segunda camada, que narra a história da ação propriamente dita (ainda que totalmente mitológica), e que, finalmente, é a primeira camada dessa trama. Se pode perceber durante todo esse ensejo a função imagética que permeia do começo ao fim essa longa trajetória mimética e, mesmo que assuma esse caráter representativo, é nova e singular, como podemos perceber através de Pareyson: “Além disso, se as obras são sempre singulares, pode-se afirmar que é impossível fazê-las sem que ao fazê-las se invente o modo de fazê-las”. Ou seja, temos aqui uma obra mimética que, ainda que seja mimesis, é nova e de caráter criativo.

As extrapolações que Lewis usa em sua narrativa, bem como os pontos mais semelhantes com o texto bíblico, são em sua totalidade um exemplo para o que Pareyson entende por formatividade, como podemos visualizar nas citações:

• ...pode-se estender a arte a toda atividade e a beleza a toda obra... [Pareyson p.23]
• Mas na arte essa formatividade, que investe toda a vida espiritual e possibilita exercício das outras operações especifica por sua vez, acentua-se no predomínio que subordina a si todas as outras atividades, assume uma tendência autônoma [...] fazendo-se intencional e fim em si mesma. [Pareyson p. 25]
• ...mas não existiria a arte propriamente dita, uma arte simplesmente arte, [...] é necessário que a formatividade se possa especificar e que o formar não se preocupe mais com formar pensamentos, virtudes [...] a não ser a si mesmo. [Pareyson p. 30]

Em suma, a arte é uma realização autotélica, e mesmo que tenha por base uma construção anterior, se bem feita, terá um caráter de singularidade e de novidade. Nos escritos de Lewis, encontramos essas exigências cumpridas e, no movimento de ir ao texto bíblico e sair dele, sua arte literária realiza o papel da arte enquanto formatividade. 

A segunda imagem – O rei Narniano

Na segunda construção de Lewis temos um exemplo que é muito semelhante ao evento bíblico e ao mesmo tempo está, por outro lado, cheio de novas perspectivas. Na bíblia cristã lemos: 

Certo dia, quando já adulto, Moisés dirigiu-se para junto de seus irmãos hebreus e viu sua aflição e como um egípcio maltratava um deles. Olhou para os lados e, não vendo ninguém, matou o egípcio e escondeu-o na areia. No dia seguinte, saiu de novo e viu dois hebreus brigando. Disse ao agressor: “Por que bates no teu companheiro?” Ele respondeu: “Quem foi que te nomeou chefe e juiz sobre nós? Queres, talvez, matar-me como mataste o egípcio?” Então Moisés assustou-se e disse consigo: “Com certeza o fato tornou-se conhecido”. Quando o faraó soube do acontecido, procurou matar Moisés. Este, porém, fugiu do faraó e foi parar na terra de Madiã. Ali ficou sentado junto a um poço. [Êxodo cp. 2 – Bíblia Ed. CNBB]

A semelhança mais importante e que moverá toda a cadeia de eventos que sucedem a ela é a morte do opressor, que se dá por Moisés no texto bíblico, e por Tirian na obra de Lewis. Em ambos os casos, eles se deparam com uma demonstração de poder abusivo e agem em defesa do agredido, e nas duas fabulas matam os algozes opressores. Tanto Tirian quanto Moisés fogem na sequência do assassinato por medo da pena que teriam que pagar e, em ambos os casos, se redimem de alguma maneira. Na história de Moisés, o conhecimento sobre o fato se deu após um tempo e houveram medidas para encobrir o fato, mas para Tirian o sigilo não durou mais que alguns minutos:

- Trabalhe, sua besta molenga! – Berrou um dos calormanos, açoitando selvagemente o cavalo com o chicote.
Aí então uma coisa terrível aconteceu.
Até aquele momento Tirian imaginara que os calormanos estivessem usando seus próprios cavalos: animais mudos e irracionais como os cavalos no nosso mundo. E, embora detestasse ver qualquer cavalo, mesmo mudo, sendo maltratado, [...] O cavalo, porém, ao ser atingido por aquele golpe selvagem, empinou-se e soltou um grito estridente:
- Seu tirano idiota! Não vê que estou me esforçando ao máximo?
Ao verem que o cavalo era um dos seus próprios narnianos, tanto Tirian quanto Precioso foram tomados de tamanha fúria que perderam a noção do que estavam fazendo. A espada do rei subiu e o corno do unicórnio desceu. Os dois avançaram de uma vez. Em questão se segundos os dois calormanos jaziam mortos no chão, [...]
- Rápido! Em minhas costas! – gritou Precioso.
O rei montou de um salto o velho amigo, que se virou e partiu a galope. Assim que se viram fora das vistas dos inimigos, mudaram de direção umas duas ou três vezes. [...]
- E agora, senhor, para onde vamos? Cair Paravel?

Como podemos notar, existe uma nítida semelhança ao matar o carlormano no caso de Tirian, e o egípcio no caso de Moisés, pois, em ambos os casos, eles o fazem para ajudar alguém que está sendo oprimido. Lewis, porém, diferentemente do livro do Êxodo, cria uma série de detalhamentos que de alguma maneira, além de tornar a história mais viva a faz mais intensa. Sua pessoalidade aparece enfaticamente nas extrapolações que faz, realizando o que Pareyson afirma; “...o conteúdo da arte é a própria pessoa do artista, sua concreta experiência sua vida interior, sua irrepetível espiritualidade..."[p.30]. 

Como convertido ao cristianismo, Lewis coloca todo o peso da sua vida espiritual na produção desta obra. “As crônicas de Nárnia” podem ser pensadas numa analogia com uma pintura; a conversão do autor é a tela, o mito bíblico as cores primárias, e as fabulas folclóricas da Irlanda, as misturas ou os diferentes tons. Esses três elementos juntos criam uma história fantástica em que “a espiritualidade do artista se torna, ela mesma, exercício e realidade artística..."[p.31]. É uma produção artística que compreende, na sua essência, o significado que Pareyson dá a formatividade proveniente da vida espiritual.

Ao realizar sua obra tendo como primeiro alicerce a bíblia cristã, Lewis cumpre mais um dos aspectos que Pareyson indica como próprios da formatividade orgânica pela qual a arte se faz. Em seu texto, o filosofo italiano afirmará que, mesmo compreendendo toda a liberdade do artista, é impossível superar a resistência da matéria com a qual este artista trabalha. Essa limitação é entendida positivamente e se encontra presente de duas formas em Lewis.

Primeiramente, como foi dito na limitação textual, tendo como base as imagens bíblicas que, ainda que não seja uma limitação material propriamente dita, parece atender ao que Pareyson compreende por resistência, ou seja, existe algo que limita as possibilidades do artista. A segunda limitação, que é a mais obvia, é a própria escolha pela literatura, que ainda que me pareça a mais plástica de todas as artes (pensada no sentido de plasticidade enquanto aberta a possibilidades) é uma forma de limite.

Enfim... 

Toda a construção sobre a formatividade de Pareyson indica que a arte é a tensão que existe entre dois extremos; é um ir e vir entre conteúdo e forma sem se fixar em nenhum deles cegamente e, acima de tudo, é uma organicidade auto construtiva. Acredito que toda a obra de Lewis pode ser compreendida como formatividade na sua ideia mais pura, e que essa obra atende especificamente o que Pareyson parece supor como a arte mais bela. “As crônicas de Nárnia” são um dos belos exemplos de literatura fantástica, e todo o seu cenário mitológico ou fabuloso proporcionam ao leitor um exercício constante de rememoração da bíblia cristã. 

Os dois exemplos citados são ínfimas indicações de uma obra assaz referencial e ao mesmo tempo cheia de elementos novos que fazem as telas dessa construção repleta de significações. O que se conclui ao ler C.S. Lewis, e durante essa leitura ir percebendo as imagens bíblicas por traz dela, é que a limitação pelo tema bíblico não impede que o autor vá além, e que nesse movimento construa com toda a sua vida espiritual uma nova história, uma nova fábula, uma nova obra de arte, depositando uma carga de todas as suas preconcepções, e ainda assim mantendo a possibilidade da arte se formar.

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