Os viventes, Carlos Nejar


O poeta Carlos Nejar é um dos mais importantes tradutores de Borges e Neruda, brasileiro, gaúcho, membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Filosofia. É o responsável pelas “criaturas poemas”, como ele mesmo prefere chamar os poemas que compõem “Os Viventes”.

Muitos leitores resistem aos poemas, os consideram a forma mais maçante de se expressar na literatura, mas “Os Viventes”, sem dúvidas, é a oportunidade perfeita para rever este conceito. A estrutura da obra cria um laço entre leitor e personagens que em nada deixa a desejar para uma obra literária convencional (não que poemas não sejam convencionais).

Nejar agracia diversos seres viventes com um poema, mais que isso, ele recria personagens que conhecemos, como Daniel, o personagem bíblico, Helena, a responsável pelo início da guerra de Troia e diversos outros, de brasileiros importantes na história a personagens ficcionais que estão em outras obras de outros autores, mas dos quais sempre temos notícias. Mas não pense que somente personagens com fama histórica aparecerão neste compêndio de poesias. As ervas, formigas, flores e vermes também são seres viventes.

"Ode ao passarinho morto
Um tico-tico morto
na varanda. Pisado
pelo pé da tempestade.
Ou com a idade da morte
foi bicado e perdeu
o som, o descer
o subir da gravidade,
perdeu o peso,
e as penas se apagaram
no ar como se um fósforo
riscasse a numerosa
curva, casca.
Voar era seu mistério.
Agora o enterro
na terra do quintal
e as plumas
doem nas mãos,
queimando,
pobre vegetal
do céu, retornas
à árvore pelo véu
de tua semente
atônita."

Há um clima de intimidade entre as criaturas, ainda que seja difícil pensar de imediato qual a relação entre Nietzsche e Jó, entre Jó e um inseto e entre o inseto e Nietzsche. Formas de vida são repensadas, estruturas orgânicas ganham novo significado e o essencial de cada uma das criaturas viventes permanece preservado.

Alguns poemas são mais duros e nos doem, especialmente quando se tem contexto sobre os personagens mencionados. Um dos exemplo é um fragmento do poema de título: A mulher de Ló.

"Por descuido os olhos
me fugiram e eu fugi deles.
E era a impetuosidade
da fêmea que se pressente
perseguida. Olhei para trás
sem argumentos para enterrar
os pés. Ou desastradamente
me esqueci. Ou me deu
um lampejo de loucura
e era humana, voluptuosa,
impaciente para os sonhos.
Tinha pensamentos e voaram
e fui atrás. E não vi a areia
que me alcançou, o enxofre.
O sal e o sol do nada,
a estátua sem o nome.
E de sal, o mosto, o dorso.
Pétreo, pétreo rol
de ardida imobilidade".

O leitor que conhece a narrativa bíblica certamente estanhará personagens silenciosos ganharem voz, achará curioso que personagens da literatura sempre considerados ao longo da história como cruéis ou maldosos recebendo a oportunidade de se defender, de explicar suas razões, de sofrer a dor daqueles a quem foi infringida. Aos viventes é concedida a voz que o criador lhes negou e todos têm o mesmo estatuto e condição de existência, de Goethe aos búfalos, de Cristo às moscas.

"Jeremias
Como suportar a palavra,
se sou um menino
e não posso envelhecer
mais veloz, embora
a idade seja pétala
caindo.
Como suportar a palavra,
se nela aparamos
o íntimo sangue
e não há coração suficiente,
não há esquecimento.
Como suportar a palavra,
quando o fogo, a prisão,
a penúria nos corroem,
se a levamos à montanha?
Mas decidi suportar,
ver o mundo com sua razão
e loucura, o fole
do mundo, o ruído
de um pequeno animal
Não há coração suficiente."

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