As obras do amor - O paradoxo da existência



Søren Kierkegaard foi um filósofo existencialista dinamarquês, autor de um texto chamado “As Obras do Amor”. A filosofia kierkegaardiana é repleta de paradoxos que somente o sujeito que se tornou “indivíduo singular” – nas palavras do próprio autor – é que consegue compreender do que se tratam os paradoxos e, assim, dissolver toda contradição aparente pelo salto dado na fé. Mas onde toda essa conversa nos leva?

Em certo momento, no capítulo V das "Obras do amor", Kierkegaard afirma: “O amor cobre uma multidão dos pecados”. Como compreender essa afirmação? Como aceitar a perspectiva Kierkegaardiana? O amor não deveria descobrir uma multiplicidade de pecados e assim corrigi-los? Vamos entender pecados como erros, já que a visão do autor é cristã, mas sua filosofia enxergada no campo existencial traz reflexões ainda mais interessantes. Então, retornamos às questões, afinal, o amor parece implicar em conhecimento do ser amado, do “objeto” de amor. Como poderia o amor cobrir, e não descobrir, os erros da pessoa amada e ainda assim nunca se enganar? 

Na perspectiva deste autor tão paradoxal, em certos momentos o amor é aquele que cobre uma multidão de pecados, não é um amor tolo, não é ilusão, mas é um cobrir, afinal, ele não os descobre, e ainda assim deve estar aí, ou seja, está presente ao cercar estes erros. Na medida em que se deixa descobrir, é cobrir. Aí está parte do largo movimento paradoxal encontrado nas “Obras do amor”. O amoroso nada descobre, porém nunca é iludido, como encontramos em outra seção das obras do amor. 

A dinâmica de Kierkegaard é tão infinitamente solene e voltada para uma compreensão de nível vivencial que, ao mesmo tempo em que algo não se ilude, pode simplesmente cobrir os erros que o cerca. O ponto de partida deste autor está na primeira carta de Pedro. Sim! A boa (ou nem tão boa) bíblia cristã, onde se lê: “Acima de tudo, porém, tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de pecados” 1 Pedro 4:8. Mas este cobrir, como dissemos, não é ignorar. Não é ser enganado e muito menos é estar apático ao erro. É, ao contrário, estar ciente, estar próximo, conhecer o erro, sem com isso se entregar também ao erro. Como podemos ler no próprio autor:

Mas o amoroso nada descobre. Há algo tão infinitamente solene e ao mesmo tempo algo tão infantil, algo que lembra a brincadeira infantil quando assim o amoroso, ao simplesmente nada descobrir, encobre a multidão dos pecados – algo que lembra a brincadeira infantil, pois desta maneira brincamos com uma criança, brincamos que não conseguimos enxergar a criança que está, porém, diante de nós. O infantil aqui, então, consiste em que o amoroso, como num jogo, com olhos abertos, não consegue ver o que acontece na frente dele; o solene consiste em que é o mal o que ele não consegue ver.

Kierkegaard parece pôr em COBRIR uma multidão de pecados o sentido de ABRAÇAR estes pecados, ou seja, não é que o amor desconsidere o erro cometido pelo pecador, ou pelo outro, mas sim um abraço de aceitação, que não quer dizer se tornar conivente com o erro, mas abraçar aquele que erra e dimensioná-lo como sujeito pronto para o salto e pronto acima de tudo para ser amado. Esse abraço do amor é necessário pois, na sua ausência, as pessoas podem alimentar pensamentos enganadores, podem assumir que o erro cometido compõe o sujeito que erra, podem pensar que o erro é parte da personalidade de quem o comete. 

O amor, vivenciado pelo plenamente amoroso, jamais age de uma maneira a incitar outros erros, o que facilmente ocorreria se ele descobrisse a multiplicidade de pecados que cobre. Podemos compreender mais ao ler: “O ódio excita contendas, mas o amor cobre todas as transgressões” Provérbios 10:12. Em suma, isso quer dizer que o amor diminui os erros. Aquele que, abraçado pelo amor, é sufocado por essa atitude de tal maneira que não consegue lidar mais com o erro e o abandona ou sente mais fortemente que o erro é efetivamente um erro. Este sufocar do amor não é prisão, sequer é uma imposição, mas sim uma atitude de reconhecimento pelo que o cerca. É como uma cidade em guerra, sitiada por um exército forte e numeroso, que reconhece sua derrota diante de algo tão estrondosamente poderoso.

O perdão faz parte do cobrir, do abraço do amor, mas não é sua essência, é apenas uma de suas características. Mas cobrir pecados é ainda mais sublime que perdoá-los, pois é anterior ao perdão. O amoroso se coloca em tal posição que, antes mesmo de ter conhecimento do pecado, ele já o cobre. Dessa forma é possível amar o pecador mesmo quando nós somos prejudicados pelo pecado deste outro, mas o abraço, reiterando, é muito mais do que isso: ele não se iludirá sofrendo longamente pelo erro do outro.

A atitude do amoroso não é a de um masoquista, pois devemos amar de uma maneira tal que o amado alcançará o reconhecimento dos seus erros, sem que com isso incorra em “socorrismo” ou em atitudes de superioridade com relação àquele que erra. O amor do amoroso kierkegaardiano é capaz de fazer sem perceber que faz. É diferente da forma como normalmente entendemos o amor, ele não é um amor socorrista, apenas está lá, sem forçar nada. Talvez a única ação mais direta do amor seja a de impedir que o amoroso veja e ouça a multidão dos pecados, ainda que mesmo assim tenha consciência deles.

É notável a quantidade de paradoxos que foram colocados até agora, mas a filosofia de Kierkegaad os suporta, e o amor se torna algo de outra dimensão. Amor e erro perpassam por outros meios. O amor acaba por evitar a multiplicação dos pecados, o que podemos dizer é que o amor não precisa do conhecimento do erro, ou atitudes sobre ele, pois não precisa buscar qualquer coisas que não seja sua própria fonte: "Olha aqui o redobramento: o que o amoroso faz, ele o é, ou se transforma nisso; o que ele dá, ele possui, ou melhor, ele o recebe – e isso é tão estranho como dizer: “do que está comendo vem a comida .” Mas talvez alguém diga, “não há nada de estranho em que o amoroso possua o que ele dá; tal é sempre o caso; não se pode dar o que não se tem”.

Enfim, discutir o amor em Kierkegaard é se colocar num terreno acidentado e de letras belas. Tratar da filosofia deste autor é estar disposto a abrir portas com a chave do paradoxo; cada uma delas leva a caminhos mais tortuosos. A filosofia existencial por si só dá grande margem para interpretações e discussões. O tema abordado n’As Obras do Amor ganha uma roupagem distinta, ou perde toda roupagem, mais um paradoxo... Nada demais numa obra como a de Kierkegaard.

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