Que Horas Ela Volta?, Anna Muylaert

O quão bem você conhece quem está ao seu redor? O quanto você acha ser capaz de se importar com alguém que não é sua família de sangue? Onde está o limiar do amor? Com questões ousadas a serem respondidas, “Que Horas Ela Volta?” chegou ao circuito nacional depois de ter sido exibido, e ovacionado, em festivais pelo mundo. Tal recepção se repetiu no Brasil, onde tem sido exibido em cada vez mais salas de cinema, reafirmando meu ponto de que estamos vivendo a melhor fase do cinema nacional.

Val é uma emigrante nordestina que trabalha na casa de uma família rica. Logo no início do longa, somos apresentados a um deslocamento de tempo que indica que ela exerce a profissão de empregada doméstica há muitos anos. Val desenvolveu um sentimento especial de afeto por Fabinho, filho do casal Carlos e Bárbara, agindo como sua mãe e cuidando do menino praticamente o tempo todo. As coisas se complicam quando a filha de Val se muda para ficar com a mãe, a fim de ingressar em uma faculdade de São Paulo. A convivência é difícil, pois as duas não se viam há mais de dez anos e porque Val mora na casa onde trabalha, que torna a situação constrangedora para ela. 

As relações interpessoais do filme são o foco principal. A dinâmica obtida com a relação de Val com a família que a emprega é sensacional. Bárbara não se sente como a matriarca da família, pois Val tomou o papel de mãe de seu filho. Em seguida, Carlos tem o interesse despertado por outra mulher, o que faz com que Bárbara se sinta dispensável e aja de maneira rude. Fabinho é desprovido de apego material e tudo que quer das pessoas, ele encontra em Val. Ela o ama incondicionalmente e isso é o bastante para ambos.

Depois de assistir esse filme, eu tive vontade de processar quem inventou o “Esquenta”. É um pecado deixar que Regina Casé perca seu tempo apresentando aquele programa quando poderia ser atriz de outro filme de tanto impacto quanto esse. Vemos em Casé todo o merecimento dos prêmios de melhor atriz recebidos no Seattle Film Festival e no Sundance International Film Festival. Ela consegue transmitir os trejeitos e sotaque da nordestina Val com naturalidade e entrega. Muitas das cenas envolvem expressões corporais e é o rosto de Casé que ganha a tela. Seus olhares expressivos combinados com suas mãos nervosas trazem à tona o receio mais frequente de Val: o de perder o emprego. O longa também teve bastante esmero na composição da fotografia. Muitas cenas são filmadas com dois planos em evidência. Em metade da tela você consegue ver, por exemplo, Carlos tomando café e, na mesma cena, também consegue acompanhar Val se dirigindo para retirar a mesa. Tal técnica provocou uma imersão mais “íntima”, se é que posso definir assim. Você não é um espectador do filme. É um espectador do cotidiano daquela casa. 

Outra questão óbvia e que o filme não deixa passar é a desigualdade de status social. A família é muito rica. Eles possuem uma casa enorme, obras de arte e carros. Val é muito pobre. Ela não tem, sequer, uma casa. A piscina acaba funcionando com um divisor muito cruel dessas duas condições. Ao chegar na casa dos patrões de sua mãe, a filha de Val pergunta imediatamente “você já entrou nessa piscina?” e recebe uma resposta negativa espantada. Val acha muito natural que ela não tenha direito às mesmas regalias que seus empregadores. Ela se põe num patamar necessariamente inferior porque é onde ela foi levada a acreditar que ali pertença. A regra não verbalizada é clara para ela: nós, empregados, ficamos da cozinha para cá; eles, patrões, são os donos de tudo. Apesar dessa distinção ser incômoda, é a partir dela que surge uma das cenas mais emocionantes e bonitas do filme. Após perceber que a sua filha não precisará ter a vida que ela tem, Val acredita que ali nasceu a chance para que sua filha não tenha o status “inferior” que ela tem. E ela comemora entrando na piscina. O limiar não existe mais.

Não saberia dizer se a intenção de Muylaert era fazer uma comédia. O filme tem sim suas tiradas de humor, mas é tão bonito e tem uma mensagem muito importante para se reparar, que os risos acabam sendo esquecidos. “Que horas ela volta?” propõe ao espectador a pensar nas dificuldades das outras pessoas. Sendo apresentado pelo ponto de vista, invariavelmente, dos empregados, o filme funciona como um contraponto ao, também excelente, “Casa Grande”. Ambos merecem ser vistos e revistos. Anna Muylaert trouxe visibilidade para o cinema nacional e lágrimas aos olhos de muitas pessoas. É uma história linda, comovente e real. Totalmente cabível e relacionável, seja em que nível for. Depois de ser tão bem recebido pela crítica dos festivais, só resta esperar por mais resultados. Seria demais esperar uma indicação ao Oscar? Acho que não. Se isso acontecer, vamos organizar um churrasco com pagode, mas sem ninguém gritando “Esquenta”.

2 comentários:

  1. Tbm concordo que Regina se perde apresentando aquele programa da globo.

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  2. Regina é tão boa atriz que finge amar o Esquenta e bancar a humilde apresentando. Não duvido que atue bem no filme já que praticamente todos os papéis dela em cinema e novela são nordestinos. Discordo sobre a melhor fase do cinema porque é muito mais comum ver filme no estilo "feito pra tv" com esse monte de comédia fútil do que filme de grande visibilidade com a reflexão do "que horas ela volta?". Sem contar que temos nos anos 90 e início dos anos 2000 muito filme excelente que levou o Brasil um patamar internacional (Central do Brasil).
    Agora, sobre o "que horas ela volta?" ainda não vi, mas já sou fã do tema e do desconforto que tem causado em algumas pessoas. A resenha tá, como sempre, muito sensível. Parabéns!

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