As máscaras da sociedade em "Breve Romance de Sonho"


Breve Romance de Sonho, a história mais famosa de Arthur Schnitzler, escritor e psiquiatra, aborda com grande maestria, em suas poucas páginas, o mundo de máscaras ao qual a sociedade moderna está inserida. Um mundo de aparências, onde “a moral e os bons costumes” reprimem os desejos instintivos do antro selvagem humano. Outrossim relaciona tal abordagem ao principal pilar dessa sociedade: o casamento. Perdido e confuso, o homem encontra-se desnudo frente a um outro mundo, que coexiste com o das aparências; um mundo anônimo e obscuro, onde, protegido por uma máscara, pode-se libertar das amarras morais e deleitar-se ao seu bel-prazer em prazeres carnais.

A representação patriarcal da história, Fridolin, vê-se obrigado a restabelecer seu papel social de homem após ser ultrajado por confissões de desejos extraconjugais de sua esposa, Albertine. Confuso por tais revelações, Fridolin sai em busca de alguma forma de traição. Sente-se desconectado de seus privilégios como homem quando depara-se com as revelações de sua esposa, passando não vendo-a mais como objeto, mas como alguém que sente e deseja, e que não apenas está ao seu lado para servi-lo, de acordo com o ideal de mulher perpetuado pela sociedade. O sentimento de traição corrói os pensamentos de Fridolin quando percebe que Albertine sentiu, pelo menos uma vez na vida, o desejo por outro homem. O simples desejo de sua esposa o abala, e ela, como se estivesse lendo seus pensamentos, ri debochadamente como se o raciocínio de seu marido fosse infantil.

A atmosfera onírica e escura percorre toda a ambientação da história criando uma sensação de intimidade. A escuridão recorrente nos remete aos desejos íntimos, aos segredos, àquilo que não pode ser visto ou lembrado. Tanto as confissões de Albertine quanto os devaneios de Fridolin se passam em momentos de obscuridade; segredam ao leitor seus desejos mais profundos e seus instintos mais fortes e fúteis. Fridolin percorre uma noite de encontros e desencontros, mas também de reencontro consigo mesmo e com seu papel na sociedade. A verdadeira face do homem mostra-se sob uma máscara, sob às escuras. Desejos sexuais, violências, perseguições e ameaças encalçam o caminho dessa noite misteriosa na vida de Fridolin.

Após as revelações de sua esposa, Fridolin recebe um chamado de um antigo paciente que viera a óbito, e é aí onde sua noite começa. Ao chegar na casa do falecido, depara-se com Marienne, a filha desamparada, que, em meio à situação grotesca e estranha, acaba confessando um nutrido e antigo amor à Fridolin, estando disposta a deixar seu noivado em nome de seu amado. Marienne, é, senão, aquela que Albertine poderia ter sido, caso tivesse concretizado seus desejos extraconjugais. Marienne, à espera de uma palavra positiva de Fridolin, sente-se envergonhada e desconsertada após a recusa. É quando se dá conta do seu ato e de suas possíveis consequências; é quando Marienne se reconecta ao mundo das aparências, onde reprimia seus desejos até não aguentar mais.

Mais tarde, Fridolin é, por acaso, confrontado com jovens tolos que o insultam, mas ele, amarrado ao seu papel de pai e marido, mantém a diplomacia e decide não arriscar-se. Novamente por acaso, Fridolin também é convidado por uma prostituta e ele aceita, porém não consegue realizar seus intentos, mesmo que desejasse. Sua ligação a Albertine numa sociedade monogâmica poda seus desejos e assim ele vai embora. Sem rumo e perdido na noite, ele se afasta pouco a pouco do mundo das aparências e é conduzido para um mundo “desconhecido”, mas era um mundo que sempre existiu, que sempre esteve à frente dele, mas nunca quis enxergar ou nunca pôde. Cego pelos conceitos que deveria seguir, pelos encargos e pelas funções que exercia, pelo casamento que acreditava ser imaculado, no qual a esposa se sentia satisfeita pela segurança que proporcionava. Não podia imaginar que aquele seu “mundo” estivesse errado ou que não fosse real. Não achava que pudesse existir nada além da racionalidade. No entanto, Albertine mostrou-lhe que não era bem assim como supunha. Existem outros sentimentos que estão “escondidos” na escuridão e que só podem ser revelados nela.

O encontro com um antigo amigo é a grande guinada da novela. Nachtigall é pianista e está em um café à espera de um carro que irá levá-lo a uma casa com pessoas que ele nunca vira antes. O amigo quer saber o porquê de tantos mistérios, mas nem o próprio Nachtigall sabe. A única coisa que pode contar, pois podia fazer, é que vê, através de um pano de seda preto e no reflexo de um espelho, uma orgia, mas não consegue ver quem são os participantes, já que todos eles estão mascarados.

A curiosidade aguça o instinto de Fridolin. O desejo grita, o ímpeto selvagem do homem aparece e move agora seus passos. A vontade de seguir o amigo até a casa é incontrolável. A idéia de risco e perigo são as chamas que queimam o seu interior e dizem o que deve ser feito: “Já sei que é 'perigoso'... talvez seja isso que me atrai.” (p. 38).

Dentro do carro, Fridolin percebe que está na fronteira entre os dois universos, as duas realidades que se demonstravam a ele. A certeza de que, depois de tudo, sua vida continuará a mesma que leva é o pilar que o sustenta para adentrar naquele mundo “novo”. A fantasia e a máscara são postas. Mas não são simplesmente postas. Neste instante, ele sabe que elas existem e são necessárias para participar de um tipo de vida que ele nunca pensou haver. Aquele mundo familiar é escondido e ao mundo desconhecido é dada a voz, o sentimento... a vida.

Na casa há vários casais, todos fantasiados e mascarados. Aquele é o mundo do instinto que percorre por entre corpos e sangue. É um mundo libertino e livre movido pelo sexo. O sexo no seu mais puro estado livre, sem compromisso e sem pudor, mas respeitando as regras daquele mundo. Fridolin vê-se em outro universo, que possui as suas próprias regras e elas não podem ser quebradas ou violadas. Assim como o outro que ele conhece e vive com sua família, dentro da casa existe um código de ética a ser seguido. Os dois mundos se invertem e, agora, aquele que sempre existiu e sempre foi marginalizado ou esquecido, faz-se presente. Ouve o clamor dos instintos, do interior do homem que não poda e não julga aquilo que faz. Não há o medo, a culpa, o receio ou a covardia.

Fridolin delicia-se com o que pode ver, o novo é admirado, palpável e prazeroso. Seus passos não são mais guiados pela razão. Está completamente fascinado. Embora reconhecido por uma jovem e aconselhado a sair daquele local, ele permanece ali, tentando identificar o que acontecia. Sua mente pergunta se era um teste, uma aprovação para poder ter o seu ápice com a mesma jovem. A sedução o envolve, deixando-o embriagado de êxtase, ao mesmo tempo em que a razão e a emoção se confundem nele.

O que estava acontecendo ardia na cabeça de Fridolin. O local exercia sobre ele certa fascinação, razão esta que pode tê-lo “denunciado” aos demais. Ele não agia da mesma forma que os outros, ele era “diferente”. Ele não pertencia àquele mundo. E assim sendo, é descoberto pelos integrantes da casa. Questionado qual seria a senha do interior da casa, ele não sabe responder. Então, feito um fogo que se alastra em palha seca, os membros daquela sociedade exigem-lhe que retire a máscara. Isso o deixa indignado, visto que não se sentia bem com a idéia de estar em desacordo com os demais. Tirar a máscara, expor seu rosto diante de outros mascarados seria o mesmo que se ver nu, se ver fora daquele universo voluptuoso. E ele precisava estar em algum “lugar”.

Depois do “sacrifício” da moça que lhe aconselhara a sair, Fridolin retorna para seu mundo e tudo agora parece ser regido pelo instinto. Inicia uma busca inebriada pela moça que o salvara, onde tal busca acaba num necrotério. Consternado, decide contar toda a sua aventura para Albertine, que por sua vez não se vê chocada e acaba aceitando tudo com naturalidade. O casal continua junto e segue com sua vida como se nada tivesse abalado a sua estrutura. Fridolin aceita os sonhos e desejos de Albertine, enquanto ela também se conforma com as declarações dele. Não há a culpa e sim um reconhecimento de igualdade entre homem e mulher.

Pode-se pensar que o instinto, antes coibido e possivelmente esquecido, agora estava presente e podia ser visto como algo natural mesmo diante de uma sociedade que proíbe a sua exposição, porque é necessário viver de forma já pré-estabelecida. A hipocrisia desta mesma sociedade é vista de forma escancarada dentro da casa dos mascarados, onde todos podiam saber que cada integrante é participante de uma comunidade que, enquanto critica e poda os instintos ou desejos do Homem, concomitantemente também participa da concretização desses desejos. Porém, para isto ser feito, é necessário que se haja uma “máscara”, uma fantasia, uma casca protetora que não permita a identificação daqueles que o fazem. A máscara e a escuridão escondem a face e a identidade daquilo que se expõe de costumeiro, mas também proporciona a exibição da outra face e da outra identidade do ser.

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