Demolidor (1ª temporada), Drew Goddard


"Não busco penitência pelo que fiz. Peço perdão pelo que vou fazer." (episódio 1)
Enfim, o icônico personagem da Casa das Ideias recebeu uma adaptação digna de toda a sua grandeza. Demolidor, um dos heróis mais maneiros da Marvel, sofreu por anos pela sombra da infeliz adaptação de 2003. Na época, o resultado foi tão ruim que a Fox perdeu a coragem de seguir a diante, os direitos pelo personagem acabaram expirando e ele acabou, consequentemente, voltando para a Marvel. Esse fato foi uma dádiva. Embora as reações da época tenham sido mistas, agora não há dúvidas de que esse destino foi o melhor. E nada melhor pra garantir isso do que uma série incrível feita pela Netflix em parceria com a Marvel. Sem medo (assim como nosso vigilante cego), ouso dizer que Demolidor é a melhor adaptação de um herói para as telas. 

A trama da série segue um nova-iorquino que, ainda criança, perdeu a visão, mas, em compensação, teve um acréscimo gigantesco em seus outros sentidos. Esse homem é Matt Murdock (Charlie Cox), recém-formado advogado que, ao lado do melhor amigo e também advogado Foggy Nelson (Elden Henson), inicia uma firma de advocacia no bairro Cozinha do Inferno, lar de ambos. À procura do primeiro cliente, eles acabam topando com uma garota - Karen Page (Deborah Ann Woll) - que está sendo acusada de assassinato, porém alega ser inocente. Esse cenário é o pontapé inicial do programa.


Fugindo da atmosfera plástica dos filmes e também das outras séries (Agents of S.H.I.E.L.D. e Agent Carter) do Universo Marvel, Demolidor é o primeiro resultado daquilo que marcará a parceria entre Marvel e Netflix: heróis inseridos num contexto urbano. Como é próprio do gênero, a série aborda temas como corrupção, crime organizado e muita violência. Imersa em tanta imundície, a Cozinha do Inferno torna-se um microcosmo dentro do Universo Marvel. Longe das batalhas de heróis ultrapoderosos contra alienígenas - mas lidando com as consequências disso -, existe um homem lutando contra as mazelas do dia a dia, num local onde o playboy Tony Stark, ou o deus Thor não chegam. Como deve ter dado pra perceber pelo que falei, a série se passa, sim, pelo Universo Cinematográfico da Marvel, mas em momento algum se prende a esse fato. Pelo contrário, desenvolve-se paralelamente de forma muito boa.

A série trabalha bem os personagens, e até mesmo os secundários são bem desenvolvidos. O que chama a atenção, entretanto, é a construção detalhista do herói e do vilão. Fica claro pra nós que os dois não são a personificação objetiva do bem e do mal respectivamente, mas que ambos possuem dúvidas sobre o que são, e convivem com duelos dentro de si. Matt, guiado por seu senso moral baseado na fé católica, se sente em contradição com esse senso e a necessidade de agir. Do outro lado está sua contraparte, seu antagoniza Wilson Fisk. Interpretado brilhantemente por Vincent D'Onofrio, o clássico inimigo do Homem Sem Medo é um homem ambíguo, composto por um garoto sensível e assustado, e um monstro dotado de fúria assustadora. O resultado acaba sendo um personagem profundo, que lembra um animal feroz acuado, daqueles que podem atacar a qualquer momento. Por esses motivos, considero o desenvolvimento de Wilson Fisk o melhor dado a um vilão dos quadrinhos na televisão ou no cinema. É interessante notar algo: ambos personagens ainda não são aquilo que conhecemos. Matt Murdock ainda não é o Demolidor, assim como Wilson Fisk ainda não é o Rei do Crime. Ambos estão em ascensão, e esse acaba sendo mais um ponto em comum que eles possuem, apesar de que Matt considere que eles sejam muito diferentes.


Em meia a tantas referências e inspirações, Demolidor acaba se afastando rapidamente do gênero de super-heróis. Ao mergulharmos na rede criminosa da Cozinha do Inferno, somos apresentados a organizações mafiosas, narcotráfico e tudo o que há de pior, remetendo aos filmes de Martin Scorsese e séries clássicas sobre crime, como Família Soprano e A Escuta. Ao apresentar-nos um Matt Murdock talhado em artes marciais, que lhe foram ensinadas por Stick, personagem famoso, e uma luta incrível no episódio 9, fica clara a influência da fase de Frank Miller à frente da revista. As histórias escritas por Miller para o Demolidor mostram-se como norte para a adaptação. Uma outra boa fase do Demolidor nos quadrinhos também influencia muito a série, que a de Maleev/Bendis, sendo que essa dita o aspecto religioso da série, e, mais importante, o visual, principalmente o noturno, que é uma imersão em escuridão - quase caindo no estilo noir -, muita iluminação amarela (cor que fazia parte do primeiro uniforme do herói), e reforços vermelhos, cor clássica que remete ao personagem.


Se a muitos críticos sempre pareceu que histórias de super-heróis eram vazias de qualidades técnicas, Demolidor reforça o fato de que eles estão errados. Com um apelo visual riquíssimo, uma fotografia de qualidade que mostra uma Hell's Kitchen suja, visceral, aspectos esses que casam com a corrupção do local. O texto bem escrito é uma marca da série, e consegue diferenciá-las das séries da editora rival por saber investir em dramas e romances sem ser soar caricata e sem esquecer que, de fato, é uma história de heróis. As lutas, entretanto, são um show à parte. Desprovidas do sincronismo mágico dos filmes, as lutas aqui são cruas, exaustivas e realmente machucam. O que prova isso é a quantidade de sangue e fraturas expostas. Dentre as muitas cenas de ação, uma se sobressai: a cena final do segundo episódio, filmada toda em um take único, e que facilmente remete a uma cena do famoso e clássico filme Oldboy, e ao mais recente The Raid. A cena é angustiante e claustrofóbica e com ela é possível notar um aspecto: a humanidade do herói-título. Embora possua uma habilidade extrema, ele também cansa, e, entre sessões de pancadaria, precisa parar para descansar. Você pode vê-la aqui.

A parceria Netflix + Marvel segue, em breve teremos séries dos personagens Jessica Jones, Luke Cage e Punho de Ferro, convergindo numa série do grupo Os Defensores. Agora, os fãs ainda esperam que uma série do Justiceiro seja adicionada à lista de adaptações. Demolidor é uma produção ousada, que entregou tudo o que prometeu e ainda muito mais. Possui, sim, defeitos, mas são tão poucos que seria desnecessário listá-los, e sequer considerá-los ante toda a qualidade da obra. Investindo em temas pesados, a série trilhou seu próprio caminho, sem precisar utilizar como muletas as outras produções Marvel. Apesar de ser dirigida e roteirizada por diversas pessoas, a série possui uma coesão muito grande, podendo facilmente ser considerada um filme de 13 horas. A história também deixou diversos indícios de personagens que podem aparecer nas futuras temporadas da série (como uma certa garota grega que fora namorada do Murdock no tempo da faculdade... os fãs saberão quem é) e também várias pontas soltas para serem aproveitadas.

Demolidor representa de vez a libertação da Marvel de histórias mais "famílias", e é feita para um público mais restrito, sem tentar agradar todos de uma só vez (erro que Agents of S.H.I.E.L.D. cometeu, embora já tenha se redimido). A produção mostra sua qualidade do início, desde a linda abertura, até o fim. Focando na incursão de um advogado durante o dia, e justiceiro durante a noite, a história nos mostra que uma jornada de justiça nem sempre precisa ser feita sozinha, e Matt descobrirá isso aos poucos quando perceber que precisará da ajuda de muitos. Justiça, aliás, é um tema recorrente na série. Tanto Matt Murdock quanto seu alter-ego, o Demolidor, são como a deusa Têmis, símbolo do Direito. Pelo dia, Matt é cego como ela e usa a balança para pesar suas ações no tribunal. A noite, usa a espada para combater aqueles que, por corrupção, não são atingidos pela justiça usual.


A série representa a maioridade da Marvel e, por mais pretenso que isso possa parecer, é a melhor produção televisiva envolvendo super-heróis, assim como a melhor obra entregue pela Marvel. A série do Demolidor pela Netflix não foi a primeira tentativa de adaptação de super-heróis para a televisão, entretanto, tal foi o seu trunfo, acabou por criar um modelo que, querendo ou não, as futuras séries do gênero seguirão. O que resta agora é esperar a segunda temporada que já foi confirmada pela Netflix para vermos novamente o Homem Sem Medo, seus amigos, seus inimigos e os diversos problemas que ele enfrenta. Pode ter certeza que tem coisa ainda melhor vindo por aí.

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