True Detective (1ª temporada), Pizzolatto e Fukunaga

 
"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você." (NIETZSCHE, Além do Bem e do Mal, p. 89)
Das lúgubres paisagens da Louisiana, surgem assassinatos com um grande tom ritualístico. Tudo indica a ação de um assassino em série, mas logo os boatos de crimes com cunho anti-cristão se espalham pela população criando comoção geral. Por todos os lados surgem pistas, mas estas são desconexas e abstrusas. No meio desse redemoinho estão dois homens. Dois homens muito diferentes, mas que, para fins práticos, terão que aprender a conviver. A relação nunca será das melhores, mas terá que ser assim, e, enquanto o tempo corre, ambos se verão perdidos em labirintos e sendo assombrados por demônios do passado.



True Detective surgiu no ano de 2014 e logo após o primeiro episódio chamou a atenção dos telespectadores. A série, a princípio, mostra-nos uma trama policial como várias outras no meio televisivo, mas os minutos passam e vai ficando claro para quem assiste que a programação, com certeza, foge do comum. A trama criada por Nic Pizzolatto ressuscita as clássicas histórias de detetives, aquelas do policial bom contra o assassino mau. Entretanto, o enredo nos diz que as coisas não são tão simples assim. Misturando vários elementos que parecem não ter relação, a série cria uma incursão ao psicológico humano, discursando sobre o âmago da maldade e seu duelo com o bem.



A série possui uma narrativa composta por duas linhas do tempo: 2012 e 1995. Na época passada localiza-se o velho caso pelo qual a dupla dos detetives é responsável. No tempo presente, os dois estão sendo interrogados, e aos poucos fica claro que existe algo errado com o caso. O fato da história ser conduzida por duas linhas temporais acrescenta complexidade à trama, e mostra-nos que nem tudo é tão simples quanto parece ao revisitar os acontecimentos do passado.

No começo, tudo é desconexo. As informações que a série dá são aleatórias. Isso contribui e muito para fazer com que o espectador se sinta como os detetives, procurando agulhas em palheiros. Além do mais, os personagens precisam lidar não só com o caso, mas sim com eles mesmos. Através da relação deles entre si e com aqueles que os cercam, a abordagem da série vai ficando mais profunda. As tintas que revestem a dupla de protagonistas começa a descascar, e eles começam a se mostrar como realmente são. Marty Hart (Woody Harrelson) passa de um pai de família cristão para um hipócrita moralista. Rust Cohle (Matthew McConaughey) passa de um homem reservado para um niilista assombrado pelo passado. As atuações dos protagonistas são muito boas, tanto a de Woody quanto a de Matthew. Matthew, porém, desenvolve um personagem único, cativante em sua ironia e acidez.



Entre os diversos temas abordados na série, um dos mais recorrentes é a ideia da circularidade. O próprio fato da narrativa ser conduzida por duas linhas temporais, em que em ambas ocorrem investigações, é indício disso. Através dos anos, o mau se perpetua, e as ações criam feridas nas pessoas que estão à volta. Nisso, eleva-se um ponto positivo da série: a coesão entre o texto e a imagem. Dotada de um dos roteiros mais bem-feitos da televisão, a trama criada por Nic Pizzolatto dialoga fortemente com a direção de Cary Fukunaga e a fotografia de Andrew Arkapaw e todo o resto da produção. Os monólogos de Rust sobre o tempo circular, assim como as falas de alguns personagens que remontam ao Grande Retorno de Nietzsche, o roteiro toma forma através de pinturas de espirais em cenários e objetos distintos. A linguagem simbólica da série é, também, digna de nota, e acaba sendo um show de referências jogadas ao telespectador todo o tempo. Diante de tantos símbolos e pelo fato de ter tramas paralelas extremamente sugestivas, a série causou um verdadeiro alvoroço na internet, com um grande fluxo de estudos e teorias que a rede não via desde Lost.



Mais do que desvendar um crime, a Nic Pizzollato interessa realizar uma análise psicológica de seus personagens, no maior estilo HBO de fazer televisão. Mas o roteiro não anda sozinho. Pelo contrário, é alçado por toda a parte técnica. Desde a fotografia à montagem e aos recursos sonoros, tudo contribui para a criação de uma atmosfera misteriosa e subjetivamente assustadora. Assim como o duelo ético que se passa na cabeça dos protagonistas, em muitos momentos o enquadramento da câmera realça o duelo de opostos que é a industrialização e as paisagens naturais dos locais; os pântanos sulistas em contraste com a poluição industrial. Essa poluição também é reforçada pelas imagens de pobreza, prostituição, e doença da região, criando uma ideia de causa e consequência. A organização política e religiosa da região, que gira em torno de apenas uma família, apoia-se na fragilidade das pessoas para erguer-se, e cria uma relação de dominação. Os oprimidos são, claramente, vítimas do esquema corrupto que amarra a região.

Dentre as inúmeras influências para a série, podemos destacar a literatura de H. P. Lovecraft, assim como a de Robert Chambers e William Faulkner, e até Alan Moore (mais especificamente sua contribuição para a série de hq's do "Monstro do Pântano"). Todos essa influência é vista, muitas vezes, nos indícios sobrenaturais da série. Mas eles são raros, e possuem múltiplas interpretações. Os autores da série foram espertos ao caminharem entre a realidade e a fantasia sem torcerem demais para um lado. Nic Pizzolatto também anda pela filosofia e traz muitos problemas e reflexões baseados em autores como Schopenhauer, Nietzsche, e alguns conceitos de filósofos pré-socráticos e outros dos existencialistas do século XIX. 



O fato de toda a temporada ter sido escrita apenas por Nic Pizzolatto e dirigida só por Cary Fukunaga dá um aspecto muito homogêneo a série, e temos a impressão de que é, segundo as palavras do próprio roteirista, "um filme de 8h". O diretor merece uma menção especial pela seu trabalho primoroso, valorizando muito os planos abertos e aproximações ou distanciamentos de câmera lentos que casam com o tom sombrio das diversas cenas. No fim do episódio 4, tem um plano-sequência que dura 6 incríveis minutos de tirar o fôlego. É uma cena memorável, uma das mais bonitas da série (veja aqui!) e, com toda certeza, foi decisiva para entregar o Emmy 2014 de Melhor Direção em Série Dramática para Fukunaga.



Tratando da luta entre luz e escuridão -- aquela que é considerada a história mais antiga de todas, segundo Rust --, True Detective merece todas as honras que recebera. É, sem dúvidas, um programa que chegou despretensiosamente e agora já possui um lugar cativo entre as melhores obras da televisão. Utilizando-se do formato clássico de uma ficção policial, o programa se eleva e desconstrói o ideal de herói/vilão. Não possui, de forma alguma, uma visão maniqueísta de mundo. Pelo contrário, admite a dualidade presente em qualquer pessoa. Seja em Marty, o "cara do bem", seja em Rust, o "estranho". Ou seja em nós. A série trata de um assunto comum a todos, e que, apesar de toda a sujeira e escuridão presente na maior parte do tempo, no final nos dá uma ponta de esperança e otimismo. Nem todos os "caras maus" foram pegos, alega Rust para Marty. Assim como na vida real também não serão. Mas a luz precisa do escuro para existir. Por mais escuro que seja o céu, enxergamos as estrelas cortando essa escuridão. Por mais maldosa que possa ser a vida, enxergamos lampejos de bondade. E é essa esperança que nos fará, assim como a dupla de protagonistas, seguir em frente com a vida.

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