Fahrenheit 451, Ray Bradbury

Fahrenheit 451 é uma história trágica. Tentem me entender: para qualquer pessoa que tenha um certo amor por livros, a ideia de um mundo em que eles são proibidos e consequentemente queimados não é nada agradável. Se a intenção do autor era causar desconforto, ele conseguiu. Mas também fez muito mais que isso.

Escrito nos porões da biblioteca da Universidade da Califórnia (uma bela ironia) por Ray Bradbury na década de 50, o romance ─ cujo título faz alusão à temperatura de combustão do papel ─ é uma distopia e nos apresenta uma sociedade hedonista, a qual condena qualquer ato de pensamento individual diferente do senso comum.

Nesse mundo, os bombeiros não têm mais a função de apagar incêndios, mas sim de criá-los. Nesse mundo, a arte não existe, e quem dita o que deve ou não ser apreciado são os meios de comunicação, em especial as redes de televisão, e elas possuem unicamente o objetivo de manter os cidadãos num estado letárgico de alienação. Questionamentos, pensamentos críticos e tudo o mais que pareça ir contra as regras daquela sociedade é condenado. E eis que no meio disso tudo está Montag.

Ele, experiente bombeiro, nunca questionou as demandas que o cercam. Simplesmente cumpria sua função e era feliz com isso. Porém, num dia aparentemente normal, ele acaba conhecendo Clarisse, garota a qual possuía um modo peculiar de ver a vida. Seu jeito despretensioso, a forma atenta com que ela observa o que é considerado trivial e suas críticas aos costumes desperta curiosidade em Montag. No fim, ele próprio passa a analisar com mais atenção o que está ao seu redor. O encontro com Clarisse se torna a primeira faísca de uma mudança.

Pouco a pouco, o protagonista constrói uma amizade com a menina, sendo essa, de fato, a relação mais profunda que ele já experimentou. Com ela, a conversa flui normalmente e ele não precisa temer pelo que fala. Porém, cinco, seis, sete dias se passam, ele não a vê mais e isso causa nele mal-estar. Ele sente falta dela e teme que algo ruim possa ter acontecido.

E aí, os maus acontecimentos convergem. O que acontece a seguir acaba por transformá-lo ainda mais. Ele está no quartel jogando cartas com seus companheiros quando recebe uma denúncia. "Mais uma velha louca com seus livros", diz Capitão Beatty, com desdém. Mas aquele não era pra ser um dia normal. Na casa da senhora, Montag se depara com livros e mais livros. Num momento de insanidade, acaba por roubar um. Os bombeiros já encharcaram a casa e os livros com querosene, e estão a ponto de iniciarem o fogo, mas a senhora se recusa a sair e isto deixa Montag preocupado. Ele tenta tirá-la da casa e falha, e a mulher, com estranha calma, pega um fósforo e risca-o, incinerando a casa e a si própria. Por pouco que os bombeiros conseguiram salvar a si próprios. O ato deixou Montag perplexo. E assim, a faísca de mudança que fora iniciada por Clarisse se transforma numa chama.

Servindo de antagonista à história, temos Capitão Beatty, que é o chefe do quartel dos bombeiros. Ele logo faz valer seu título de vilão quando defronta um Montag cheio de dúvidas e inseguro, e revela-se muito inteligente, um homem que outrora fora um apaixonado por livros, mas que, segundo ele, chegou um momento em que "despertou" e viu que eles nada diziam. O Capitão, em seus argumentos, defende que os livros causam infelicidade e que, por isso, devem ser proibidos. De qualquer maneira, a opinião de Beatty não é completamente errada. Livros são aqueles que nos mostram o que há de melhor e pior em nós, entretanto, é justamente por isso que são importantes.

A narração ─ que é em terceira pessoa e segue o ponto de vista de Montag ─ é concisa, e Bradbury, através de sua escrita lírica, constrói uma obra extremamente poética. Um ponto alto do livro é a forma como o autor desenvolve a alienação geral. As pessoas são bombardeadas com assuntos supérfluos, e estão tão apegadas a isso que não percebem que há uma guerra ocorrendo. Ouve-se jatos sobrevoando a cidade, explosões são sentidas, mas nenhum outro detalhe acerca disso é dado ao leitor. Além disso, o autor via as televisões como instrumentos com alta capacidade de formatação de pensamentos, e grande parte de sua crítica no livro é direcionada a elas.

Antes de mais nada, esse livro é um manifesto de amor aos próprios livros, uma maneira de honrá-los. A outra mensagem é ainda mais profunda: o pensamento de que o que importa, no fim das contas, não é o físico e material, mas sim as palavras, as ideias, o conhecimento abstrato e que deve ser passado de indivíduo para indivíduo sem, necessariamente, depender do papel para isso. Obras de arte podem ser queimadas. Aparelhos podem ser quebrados, estragados. Mas as ideias, ah, essas, ninguém pode destruir.

2 comentários:

  1. Não é a primeira vez que uma resenha deste blog desperta em mim a vontade de ler um livro; estou pensando seriamente em começar esse hoje mesmo. A discussão desse livro, sobre ideias, palavras e os próprios livros em si me remeteu a um post do HypeScience que li hoje mesmo; em um dos tópicos, discutia-se que os livros de ficção tinham muita influência sobre nossos pensamentos pois uma história é muito mais interessante para nosso cérebro que o ato de enumerar fatos, e até mesmo nos deixam mais tolerantes a inconsistências. Ou seja, é muito mais fácil convencer alguém contando uma história que enumerando para ela uma série de fatos. O post, além disso, discutia o poder dos anúncios de TV e propaganda, que de acordo com sua resenha também são importantes no universo desse livro. Mas é interessante observar que, por mais que tentem alienar as pessoas, sempre vão ter algumas que não se deixam vencer (vou ter que pensar nisso quando for dominar o mundo, rs). No mais, parabéns pela resenha!

    http://contosdemisterioeterror.blogspot.com.br/

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    1. Ótima observação! Realmente, o livro é muito bom e desperta muitas questões no leitor. Bradbury sacode as nossas ideias e faz-nos pensar sobre o que tá a nossa volta. Está no meu top 5 de favoritos e recomendo que o leia o quanto antes. A propósito, fico muito feliz que tenha gostado da resenha. Obrigado!

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