A Teogonia de Hesíodo: justiça nas gerações de deuses



Não é novidade que animais humanos precisam contar uma história sobre sua origem ou ao menos sobre a maneira como o mundo foi criado. Alguns dizem que isso é o resultado da demanda natural que o ser humano possui de dar explicação para o inexplicável, outros que o mito serve para organizar a sociedade e outros ainda que o mito é uma forma de organizar a própria existência, garantindo a ela consistência, sentido e propósito. Além da explicação sobre o mundo natural, faz parte de toda mitologia alguma distinção moral, seja ela sutil ou óbvia.

A obra de Hesíodo, que narra a origem e o desenvolvimento dos deuses, comporta uma carga moral muito forte que é expressa de várias formas nas ações dos deuses primordiais e na dos deuses de gerações seguintes. Em certos momentos a moral é ignorada ou não narrada de forma clara, mas a didática ou ênfase pedagógica que a Teogonia comporta dá margem para a inserção de valores e ideia de organização política. Obviamente há também a presença do elemento cultural que não será o foco dessa breve análise por ser, caro leitor, demasiadamente profunda e, tendo em vista o respeito por um texto que influenciou toda uma cultura, decidi evitar o assunto.

O que espero é justamente apresentar de forma reflexiva o que mudou na maneira como a justiça era praticada pelos primeiros deuses e como esta foi fator determinante para manter a ordem nas próximas gerações de deuses. Mais ainda, tentarei indicar o que mudou no modo como eram governados os deuses da primeira geração e como as próximas o foram. As ideias de castigo, oferenda, punição e erro cometido ou quase cometido serão justamente os elementos que contribuirão para esse texto e acredito que também foram determinantes na construção de uma ideia de justiça desenvolvida paulatinamente.

Logo depois do hino recito para as musas (praxe em toda epopeia grega), Hesíodo narra o princípio de todas as coisas: Caos, que representa uma abertura, e não, como no conceito atual, confusão ou desordem, é a origem de onde surgem os demais deuses como Geia, e outros. O importante a ressaltar nesta primeira geração de deuses é que em nenhum momento Caos apresenta atitude de comando, forma de governo ou estatutos morais. Não existe na figura do primeiro deus qualquer alusão à justiça ou ao comando, não há em momento algum qualquer digressão acerca de moral ou de ética neste deus. O que ocorre com Caos é a necessária fonte de partida, ele parece funcionar como um catalisador que encabeçaria o surgimento e após o nascimento pelo coito de outros deuses.

A seguir do surgimento de Geia (terra), que dá a luz a partir de si mesma à Urano, e que por sua vez é feito de modo a cobri-la completamente, muitos outros nascem da mãe terra. Deste momento em diante, ela se une a Urano, seu próprio filho, e começa uma linhagem de deuses que são forçados de volta as entranhas de Geia antes que nasçam. Pela força do próprio pai, os filhos são devolvidos ao ventre de Geia. Em nenhum momento aparece a palavra rei para designar Urano, mas é nítida uma certa hierarquia e um poder superior ou diferenciado por parte de Urano, que não permite a saída dos filhos do interior de Geia.

O primeiro divisor moral que aparece na narrativa é quando Geia se refere a Urano quando fala aos próprios filhos: “pai brutal, que concebe ações indignas”. Este é o máximo de avaliação moral presente no texto até o momento e se você, caro leitor, está se perguntando sobre Caos, saiba que nele nunca aparece qualquer característica ética ou atitude reflexiva, em Urano pelo menos temos alguém julgando suas ações. O que transparece é que enquanto Urano não permite a saída dos filhos, ele garante de alguma maneira uma forma de manter o poder sobre tudo que já existe, ainda que não se tenha na narrativa muitos outros deuses, ou uma constituição organizada plenamente do mundo.

Geia oprimida pelo próprio filho e numa aparente tentativa de justiça, vingança pessoal, reparação pelos filhos aprisionados e (acredito eu) ódio pelo seu consorte, arquiteta uma forma de punição. Ela forja uma foice e oferece aos filhos a possibilidade de derrotar o pai; o único a ter coragem é Crono. O fato de ele ser o único a aceitar a missão é o suficiente para lhe imputar o papel de novo líder. Crono castra o pai com a foice forjada por Geia e torna-se assim o soberano entre os deuses.

Parece, porém, que o poder sobe à cabeça de Crono, que se torna tão cruel quanto o pai, ainda que ele ao menos apresente mais astúcia que seu progenitor. No momento em que corta a genitália do pai, nascem do sangue que goteja em Geia as Eríneas, poderosas divindades responsáveis pela vingança, o que reforça ainda mais o caráter moral da obra, deixando claro que a partir de agora existe uma entidade responsável por garantir o cumprimento da pena e de aplicação das punições por feitos malignos, até mesmo no plano divino.

Crono, que à exemplo do pai não permite que os filhos vejam a luz, engole seus rebentos assim que nascem. Reia, irmã de Crono, é quem divide o leito com o deus e é ela própria que procura os conselhos de Geia e de Urano para resolver o problema. O plano é engendrado por Geia e Urano, e o desenrolar dos eventos manifesta a justiça das Eríneas. Geia toma Zeus em suas entranhas para que cresça podendo no futuro derrotar o pai, e dá a Crono uma pedra envolta em panos para que possa engolir no lugar de Zeus; o plano de sucesso se realiza e Zeus derrota o pai e se torna o senhor dos deuses.

Deste ponto da narrativa em diante a justiça é mais presente que nunca. Zeus torna-se deus dos deuses não por imposição, mas por aclamação. E ele age com retidão e relativa honestidade para com os outros deuses. A história de Prometeu mostra os recursos morais que Zeus usa, assim como as trapaças de Prometeu que, através de um ardil, engana Zeus por duas vezes, recebendo uma pena pela justiça implacável do deus, sendo condenado por suas artimanhas e por ter roubado o fogo da morada dos deuses e dado aos mortais Sua pena foi ser amarrado numa coluna e sofrer as dores de ter, todos os dias, o fígado comigo por uma águia e reconstituído durante a noite para então, no dia seguinte, o processo se repetir. É uma dimensão de ação e consequência moral cruel, vingativa, mas ainda assim presente de alguma maneira.

A idéia de crime e punição se faz presente nesta parte da narrativa e encerra o conceito do justo merecedor de honras e do injusto merecedor de castigos e punições. No caso de Prometeu, a punição foi tão grande que não somente ele foi castigado, mas também os homens. Há uma causa e efeito por trás da punição.

“Assim não é possível esquivar-se ou ir contra a vontade de Zeus, pois nem sequer [...] Prometeu, escapou de sua terrível cólera. Foi aprisionado pelo poder de fortes correntes, apesar de sua grande astúcia. 613-616”

Zeus é deus do raio, e soberano entre os outros deuses e juiz. A implacabilidade na execução das leis que aparece em Zeus é a grande novidade nessa geração de deuses, ao contrário de Crono e Urano, que não manifestavam qualquer preocupação com punições e com a manutenção da ordem.

Na batalha que acontecia entre os titãs, já durando dez anos e ainda sem resoluções, a justiça e a sabedoria astuciosa de Zeus são novamente determinantes no conflito. Em um momento em que o final da guerra parecia incerto, após ouvir os conselhos de Zeus, os deuses unem-se em luta contra os titãs e finalmente põem término à batalha. A figura do deus dos deuses é a do controle e da escolha; no momento em que a ira de Zeus se manifesta, não há desordem. Na ótica moderna de moralidade, a figura de Zeus pode carecer dos atributos considerados justos, porém devemos nos abstrair desta visão para entender a que correspondem as atitudes do soberano dos deuses.

Por mais que certas questões de moral não sejam nítidas na obra de Hesíodo, interpretar passagens, como as citadas, como atos de aplicação deliberada de justiça e moral é algo possível. A história da literatura nos mostra inúmeros exemplos de contos e narrativas que são abertos a interpretações morais. A justiça e a ordenação que vão acontecendo paulatinamente no decorrer da narrativa nos mostram a possibilidade de ler tais passagens dessa maneira. Zeus é um salto na direção da justiça e da organização do universo.

0 comentários:

Postar um comentário

 

BLOG HORRORSHOW - CRIADO E DESENVOLVIDO POR ARTHUR LINS - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS © 2015