Cultura e Natureza n'As Afinidades Eletivas, Johann W. Goethe



Para aqueles que conhecem a obra de Goethe, especialmente o “Sofrimento do jovem Werter” fica clara a disputa que existe entre: Liberdade e Cultura versus Destino e Natureza, essa rixa pode ser notada permeando toda a narrativa nas “Afinidades Eletivas”, logo no início da obra já encontramos uma referência à esta disputa. Eduard é o personagem que representa uma certa volatilidade e que manifesta em seus atos os sentimentos mais intensos, nas primeiras linhas do texto está realizando enxertos em troncos de plantas, uma atividade que era comum a nobres ociosos. A disputa entre cultura e natureza é de tal maneira presente na obra que para o leitor atento ela já se prenuncia neste ato, aparentemente corriqueiro.

Goethe leva a dicotomia ao seu limite máximo na figura de cada um dos personagens, há uma clara distinção entre as personalidades de Eduard e Charlotte e do Capitão e Ottilie, que representam a miríade de sentimentos e modos de agir possíveis em cada extremo das visões de mundo. Se nos atentamos a essas questões podemos estabelecer uma verdadeira disputa entre aqueles que por representam a tensão existente entre cultura e natureza, entre destino e liberdade. Goethe elege os quatro como manifestações ou formas idealizadas de inquietações que também eram suas e que quando questionadas parecem ser comum a todos.

Eduard, como representante da natureza, sempre é o menos reflexivo e mais ativo, Charlotte, de seu lado manterá a calma e a compostura tentando sempre organizar os pensamentos e evitar conflitos, afinal ela é a plena representação da “Cultura”:
“Ela pediu um prazo e nesta noite soube estimular a vontade de Eduard para praticar um pouco de música. Charlotte tocava piano muito bem, e Eduard flauta, embora não com tanta facilidade, pois, mesmo tendo esforçado muito, ele não fora agraciado com a paciência e a perseverança necessárias para o desenvolvimento de tal vocação. Por esse motivo, tocou a sua parte de maneira bastante desigual: em algumas passagens bem, apenas talvez rápido demais; em outras parou por não lhe serem familiares, e desse modo teria sido muito difícil para qualquer outra pessoa acompanhá-lo num dueto. Mas Charlotte sabia como se ajustar, ela parava e deixava-se levar por ele, cumprindo assim o duplo dever de um bom regente e de uma esposa inteligente, que no geral sabe conservar a medida, ainda que em várias passagens nem sempre mantivesse o compasso.*”
Charlotte é a pessoa que se ajusta, que se encaixa no contexto, observamos isso novamente na sua forma de lidar com a natureza que a cerca, enquanto Eduard e o Capitão tem planos para mudar o terreno ela simplesmente manipula o cenário, corrigindo-o sem alterá-lo drasticamente. Ela é polida, educada e mesmo quando vê seu casamento desmoronar tenta manter as convenções socioculturais. Com a chegada de Ottilie, Charlotte facilmente se adapta à sua hóspede que por sua vez, chamará a atenção de Eduard. Todo o quadro se complica ainda mais quando um relacionamento desponta entre Charlotte e o Capitão, muito menos tempestivo que o de Eduard e Ottilie.

Dois pontos muito interessantes para se notar na obra são: primeiramente, essa dualidade cultura x natureza, que será o fio condutor de tudo que acontece com os personagens, Charlotte e o Capitão o lado da cultura, Ottilie e Eduard o lado da natureza, enquanto Charlotte é a cultura mais reflexiva e ponderada, o Capitão é a cultura mais irascível. Do outro lado; Ottilie que é a natureza mais plácida, mais serena, como uma força natural tranquila, e Eduard é uma tempestade em constante movimento, um turbilhão de forças naturais, quase um Werter.

A narrativa é a primeira vista muito básica, a história é construída tendo como base um casal de nobres em leve decadência que acolhe a sobrinha da esposa e um amigo do esposo, tudo isso mantem a primeira parte se desenrolando, até que os romances inevitáveis acontecem, diferentemente do que se acredita no senso comum aqui os parecidos é que se atraem. Goethe constrói a trama de modo a questionar o leitor sobre que posição deve ser defendida, de um lado temos Charlotte que pode abandonar seu casamento ou respeitar uma tradição já razoavelmente questionada na época e de outro temos o imperativo da natureza que comanda os sentimentos e os instigam a agir de certa maneira.

A obra se divide em duas partes, uma primeira que termina com a saída de Eduard e os romances já bem entrelaçados e uma segunda parte na qual Goethe, constrói a figura de um narrador que traça um paralelo entre a vida e a poesia para substituir, na epopeia, os protagonistas por figuras até então pouco notadas, rememorando o teatro antigo e aplicando o mesmo mecanismo na sua própria obra, o que estaria justificando a crescente importância do arquiteto na sequência da narrativa. Outro recurso é a inclusão das páginas do diário de Ottilie, onde encontramos reflexões da jovem, sobre a vida e a morte, tratadas com aparente naturalidade, já Charlotte, que também tem uma série que problemáticas com a morte, tenta evitar tudo aquilo que se refere ao acabamento da existência. Fugindo da questão e evitando discuti-la com outros ou consigo mesma.

A segunda parte será essa mistura, entre observações de Ottilie descritas em seu diário e a narração do autor que conta a partida de Eduard e do capitão, que deixam o castelo no final da primeira parte. No caso do Capitão é importante dar ênfase ao fato de que mais do que pela decisão de se afastar do amor, a sua partida parece motivada pelas duas cartas em que o conde lhe promete importante posição e negócio na corte, a patente de major, considerável salário e outros benefícios. Trata-se, no mínimo, da junção do necessário ao agradável, o que combina muito com sua personalidade e com a de Charlotte, cultural e social.

Ottilie no convívio se preocupa profundamente com a satisfação dos desejos alheios, a sua dedicação para com Eduard beira a auto-anulação: não só adota a caligrafia do amado na cópia de seus escritos**, como rapidamente se adapta forma como executa suas músicas ao piano. O mais interessante é que mesmo quando passa a tratar Charlotte com certo ar soberano, só o faz em caráter libertador, como uma forma de renúncia ao amor de Eduard como condição sine qua non para que possa se perdoar pelo descuido que ocasionou a morte do filho do casal***.

Para Ottilie que se mantem passiva e muitas vezes aquém de certas atividades, é muito coerente que decida-se por desistir da mais elementar das atividades humanas, a de se alimentar, tanto que sua morte ocorre principalmente por inanição, como uma força da natureza ela deve morrer de forma natural e esta é a última e derradeira forma de anulação e passividade...

Se o leitor espera resposta a questão: Natureza ou Cultura? Talvez se desaponte, mas se espera mais questões sobre a questão certamente se encantará.

*Goethe – As Afinidades Eletivas – Destaque nosso. 

**As suas obras o abandonam, como os pássaros o ninho em que foram chocados": sobre arte, renúncia e morte em As afinidades eletivas - Markus Lasch

***Idem

1 comentários:

  1. "Se o leitor espera resposta a questão: Natureza ou Cultura? Talvez se desaponte, mas se espera mais questões sobre a questão certamente se encantará." Então vou adorar! Com certeza vou ler.

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