Passarinha, Kathryn Erskine



“Tamanho não é documento” já diz o velho ditado. Passarinha é um livro que comprova tal provérbio. Com pouco mais de 120 páginas¹, o livro conta uma história emocionante capaz de fazer o mais resistente dos leitores refletir por horas.

Caitlin é uma menina de 10 anos. Seu irmão de 13 anos, Devon, acaba de ser assassinado com um tiro no peito em um atentado a sua escola. Caitlin, que já não tinha mãe, se vê enfrentando a dura realidade de perder a pessoa a quem mais era próxima no mundo, ao passo que o pai entra numa espiral dormente de tristeza pela perda de um filho tão jovem. Algo a mais que você precisa saber sobre Caitlin: ela tem Síndrome de Asperger, uma forma “branda” de autismo.

Com uma ideia ousada de ser trabalhada, a autora nos apresenta o mundo através dos olhos, e do coração, de Caitlin. Uma das características mais importantes da menina é a falta de noção de nuances. Para Caitlin é sim ou não e preto ou branco. Ela não entende conceitos intermediários ou sequer expressões faciais. Na escola há, inclusive, um quadro do humor, onde ela aprende a ler a expressão das pessoas para definir se estão tristes, zangadas ou felizes. Caso a pessoa não diga claramente “estou feliz” ou algo parecido, não há como a menina saber. Situações surgem e requerem um manejo social que ela não possui. Por exemplo, ao ser perguntada sobre o que quer de aniversário, ela responde que quer ir ao shopping com o irmão. O pai chora. Ela não entende o choro. Ela conta ao leitor que sabe que isso não é possível, mas é o que ela quer. Não há nuances e isso é, de certa forma, lindo.

O maior trunfo da autora foi o trato dado ao se referir aos portadores de Asperger. Kathryn lida com a condição de uma maneira simples e com bastante tato, não fazendo parecer doença e nem tratando como um circo de peculiaridades, tática usada em outra obra que li, cujo protagonista também era portador desta síndrome. A narração em primeira pessoa inclui o leitor no processo de raciocínio de Caitlin, permitindo-o notar que a menina não pretende magoar ninguém, mas sim que seu comportamento é fruto de uma inabilidade e que ela está trabalhando nisso. Aliás, os termos utilizados pela educadora, que sugerem ações cotidianas para a menina, são identificados com letras maiúsculas e se tornam ações importantes. Temos o “Trabalhando Nisso”, para indicar uma melhoria em progresso em determinado campo, ou o “Olha Para A Pessoa”, para a necessidade de se manter contato visual, indicando atenção ao interlocutor. Caitlin menciona a todo tempo tais termos e tudo adquire uma atmosfera inocente e sensível.

O livro, infelizmente, não tem uma tradução legal. Nem ao menos sei se isso seria possível, dado alguns trocadilhos feitos usando a língua inglesa de base que não podem ser adaptados para o português. No original, “Mockingbird”, tais trocadilhos com palavras são aproveitados de maneira mais eficaz e têm um significado mais interessante, por exemplo, Devon era escoteiro e estava trabalhando na construção de um armário que serviria como avaliação para subir de categoria. Trabalho que nunca fora concluído. O armário, em inglês, é do tipo conhecido como “chest”, que também significa peito. Devon morreu com um tiro no peito. A todo tempo o armário é citado no livro, pois ele fica na sala de estar, bem visível, com sua porta defeituosa. O uso da expressão “Devon’s chest”, que significa mutuamente “armário do Devon” e “peito do Devon”, tem uma carga significativa que acabou perdida na tradução e que é muito importante.

Embora tenha uma tradução ineficiente, “Passarinha”, publicado pela editora Valentina, tem seu mérito preservado. A história é linda, disso não há dúvidas, e emociona. Como tenho um familiar portador de Asperger, acredito que houve algo de extra especial no livro para mim, mas, mesmo para quem nem conheça a síndrome, esse livro trará uma visão diferente do mundo, através dos olhos de uma menina doce, que só desejava consertar o “Devon’s chest”. Mas não era possível.

1 – versão e-book lido no Kindle na segunda menor fonte

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