O Homem do Castelo Alto, Philip K. Dick


“’Ideologia’ pode designar qualquer coisa, desde uma atitude contemplativa que desconhece sua dependência em relação á realidade social, até um conjunto de crenças voltado para a ação; desde o meio essencial em que os indivíduos vivenciam suas relações com uma estrutura social até as ideias falsas que legitimam um poder político dominante.” (ZIZEK, Slavoj. Um mapa da ideologia, 1996, p.9)

Philip K. Dick é famoso por desenvolver ideias originalíssimas e, especificamente, ideias com conotação filosófica. Em “Andróides Sonham com Ovelhas Elétricas” (Aleph, 2014), a questão é o que significa ser humano. Se androides extremamente sofisticados conseguirem ultrapassar a inteligência humana, eles são humanos? O que, precisamente, é requerido para ser considerado humano? Para um detetive policial cujo trabalho é caça-los, isso se torna um dilema muito interessante.

Em “Fluam Minhas Lágrimas, disse o policial” (Aleph, 2013) o problema da identidade é personalizado; se todos esquecerem quem são, então o que restará? Se toda nossa personalidade é incorporada naquilo que os outros acreditam e sabem sobre nós, então o que reside dentro de nós mesmos?

O quebra-cabeças mais óbvio em “O Homem do Castelo Alto” é a história contra-factual – o Eixo (reuniam entre os países Alemanha, Itália e Japão) ganha a Segunda Guerra Mundial – e o papel do I Ching, um antiquíssimo livro de sabedoria chinesa. Mas, para mim, nenhum desses backgrounds se encaixa no padrão de dilema filosófico do K. Dick. “Neste livro que é considerado por muito o melhor trabalho do autor, Dick apresenta um cenário sombrio: a Segunda Guerra Mundial foi vencida pelos Nazistas. O mundo vive sob o domínio da Alemanha e do Japão. Os negros são escravos. Os judeus se escondem sob identidades falsas para não serem completamente exterminados”, assim diz a sinopse, mas é bem mais do que isso.

Penso que neste livro, o dilema é melhor escondido e mais sutil. Trata-se da relação do indivíduo com o meio coletivo. Dick pinta os alemães, japoneses e americanos com traços largos e diferentes; logo em seguida, explora o conflito social entre esses povos, em ações individuais.

Bem no início do livro, um dos principais personagens do livro tenta analisar o caráter racial alemão. Mais tarde, as várias facções dentro do mundo político alemão são identificados, mas neste momento ele rasga a "raça" alemã. E ele, Lotze, está brincando com sua identidade - ele é sueco? Judaico? Alemão? Fica a resposta para o final do livro.

“Estou racialmente próximo deste homem? — perguntou-se Baynes. Tão próximo que, para todos os efeitos, dá na mesma? Então também possuo o traço psicótico. O mundo psicótico em que vivemos. Os loucos estão no poder. Há quanto tempo sabemos disto? Encaramos isto? E... quantos de nós sabem? Lotze não. Talvez se a gente souber que é louco então não esteja louco. Ou está, finalmente, deixando de ser. Acordando. Suponho que apenas poucos tenham consciência disto. Pessoas isoladas, aqui e ali. Mas as grandes massas... o que pensam? As centenas de milhares de pessoas aqui nesta cidade. Será que imaginam que vivem num mundo são? Ou adivinham, entrevêem, a verdade...? 
Mas, pensou, o que significa louco? Uma definição legal. O que quero dizer com isso? Eu sinto, vejo, mas o que é? 
É alguma coisa que eles fazem, alguma coisa que são. É seu inconsciente. Sua falta de conhecimento dos outros. Não sabem o que fazem aos outros, desconhecem a destruição que causaram e estão causando. Não, pensou. Não é isso. Eu não sei; sinto, tenho a intuição. Mas... são deliberadamente cruéis... é isso? Não. Meu Deus, pensou. Não consigo encontrar, esclarecer. Será que ignoram partes da realidade? Sim. Mas é mais do que isso. São seus planos. Sim, seus planos. A conquista dos planetas. Algo frenético, demento, como a conquista da África e, antes disso, Europa e Ásia. 
Sua visão: é cósmica. Não um homem aqui, uma criança ali, mas uma abstração: i-aça, terra. Volk. Land. Blut. Ehre. Não homens honrados, mas Ehre em si, honra: o abstrato é real, o real c invisível para eles. Die Güte, mas não homens bons, este homem bom. É seu sentido de espaço e tempo. Enxergam além do aqui, do agora, no vasto, negro e profundo além, o imutável. E isto é fatal à vida. Porque conseqüentemente não haverá mais vida; houve um dia em que o espaço era só partículas de poeira, gases quentes de hidrogênio, mais nada e será assim outra vez. Isto é um intervalo, ein Augenblick. O processo cósmico está se acelerando, fazendo a vida retroceder ao granito e ao metano; a roda gira para toda vida. Tudo é temporário. E estes — estes loucos — obedecem ao granito, ao pó, ao apelo do inanimado; querem auxiliar a Natur
E, pensou, eu sei por quê. Querem ser os motores da história, não as vítimas. Identificam-se com o poder de Deus e acreditam-se a sua imagem. É esta sua loucura básica. Foram dominados por algum arquétipo; seus egos expandiram-se psicoticamente ao ponto de não saberem onde eles começam e onde pára a essência divina. Não é orgulho; é uma hipertrofia do ego levado ao seu máximo — confusão entre quem adora e quem é adorado. O homem não devorou Deus; Deus devorou o homem.”

Ele se tornou um pouco místico no final, mas essa é uma passagem chave para mim. Eu já passei muitas horas pensando de maneira similar sobre o mundo moderno, sobre como as pessoas podem ser tão ideologicamente apaixonadas que perdem o senso do quão destrutivas elas são, ou pretendem ser. Logo no começo desse texto eu expus um provável significado para “ideologia”, o que não está exposto, mas o farei agora, é que ideologia também pode ser uma explicação da realidade criada para iludir e enganar, uma forma de senso-comum estimulada para esconder a verdade e alienar multidões, legitimando assim o status-quo de alguns grupos. Se você entende onde quero chegar, já se tocou que, infelizmente, Dick se mantém atual.

Tenho certeza de que muitos irão rir da caracterização do rassischer Identität alemão proposta por Baynes, e eu não pretendo defendê-lo. Dick usa essas verdades culturais básicas como cordas de marionetes, inexoravelmente puxando os seus personagens. E, em alguns momentos, mostrando o quão deslocada a psyque de alguém pode se tornar quando ela é forçada a agir fora dos limites de sua cultura.

E nós (nós mesmos) devemos ser similarmente afetados. Quais são as “verdades” de nossa cultura que nos foram impostas? Os EUA são grandes o bastante para que existam subculturas agindo em oposição, mas há sempre aquele senso-comum que impera sobre a maior parte da população. Quando nossas ideologias se tornam destrutivas, nós nos tornamos loucos como os nazistas, como Baynes afirma? É fácil de ver as mentiras que os outros contam a si mesmos, mas... “e porque tu vês o argueiro no olho do teu irmão, porém não repara na trave que está no teu próprio olho?”, sabendo o quão difícil é observar as mentiras que contamos a nós mesmos (mas, por outro lado, é fácil observar a dos outros), estaremos nós fadados ao mesmo destino dos nazistas ou soviéticos em relação às nossas ideologias?

Como nas melhores literaturas, nós encontramos reflexões sobre nós mesmos e nosso próprio tempo. Essa é a força de Dick, mesmo que suas histórias sejam, algumas vezes, mal escritas, os ossos de suas histórias colocam questões que são atemporais. Onde o individual acaba e o coletivo começa? Temos mesmo livre-arbítrio? O que significa ser humano?

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