A Sombra do Vento, Carlos Ruiz Zafón


Existe uma corrente da filosofia* que analisa o que se produz em termos de arte, cinema, literatura e tudo que está no entorno disso, corrente esta que é fruto da obra; “Dialética do Esclarecimento” escrita por Adorno e Horkheimer. Nessa perspectiva filosófica toda produção de arte ou o que a valha pode ser apropriado pela indústria cultural, ou seja, pode se tornar um produto, uma mera mercadoria, perdendo assim seu valor originário. Na literatura contemporânea quase tudo visa o lucro, porém, alguns autores, mesmo populares, podem ser localizados no limiar positivo da indústria cultural. Um bom exemplo é pensar no “Senhor do Anéis” que está a muito apropriado e é parte da indústria cultural e “A guerra dos Tronos” que também é parte dessa ideia, mas as duas obras estão em extremos absurdos dentro da mesma análise filosófica. Se Tolkien está no extremo bom da indústria cultural, Martin está no extremo ruim.

Toda essa comparação introdutória é somente para situar a história do jovem Sempere na obra “A Sombra do Vento” de Carlos Ruiz Zafón, que, assim como “O Senhor dos Anéis”, de Tolkien, se situa no extremo “bom” da indústria cultural. Zafón é um mestre na escrita e demonstra sua genialidade especialmente nessa obra e no restante da trilogia, composta por além da “Sombra do Vento”, “O prisioneiro do Céu” e “O Jogo do Anjo”. São livros com narrativas independentes e histórias que se fecham, mas quando lidos em conjunto dão um sentido amplo, principalmente se o leitor for atento aos detalhes. Zafón escreve com uma das características que mais admiro: o respeito ao leitor. Sua história tem um princípio e um fim, e, ainda que comercial não é vendida, não é produzida com o foco puramente rentável, mas quer de fato entregar um relato da história de seus personagens. Nem sempre seus finais são compostos de “felizes para sempre” mas transmitem verdade em meio a toda ficção que segura a trama.

“A Sombra do Vento” é narrada em um ritmo forte e denso, com uma atmosfera bem delineada, repleta de ironia e poesia; a ambientação na Barcelona de Franco da primeira metade do século XX dá um charme doce e amargo ao mesmo tempo e se presta a pano de fundo a uma época de declínio do modernismo e as trevas do pós-guerra. Existe charme nos casarões e decadência na sociabilidade. É, em suma uma, obra sedutora, comovente, irônica, e para ser terrivelmente simples: impossível de largar. Além de ser uma homenagem sincera ao poder transformador e “desvelador” dos livros, se compromete com uma arte cada vez menos valorizada, a arte de contar uma história. Mesmo que todo livro pareça contar uma história, Zafón conta a história de uma história.

Nessa Barcelona de 1945, Daniel Sempere está completando seus 11 anos e muito triste por não conseguir se lembrar do rosto da mãe morta há muito tempo. Seu pai, numa tentativa de alegrar o filho lhe dá um presente inesquecível: lhe apresenta ao fantasmagórico, incrivelmente misterioso “Cemitério dos Livros Esquecidos”, uma biblioteca secreta ao estilo labirinto do Minotauro que guarda em suas veias obras abandonadas e raras, aguardando o momento certo até que alguém as descubra. Nessa mesma madrugada, Daniel Sempere encontra um exemplar de 'A Sombra do Vento', de Julián Carax. O livro desconhecido incita uma série de pensamentos e aguça a curiosidade no jovem e sensível Daniel, que descobre muito sobre o autor e sua vasta obra.

Daniel começa uma busca pelos outros livros do autor, motivado pela sua curiosidade e por ter percebido a profundidade e complexidade dos escritos da “Sombra do Vento” e, para sua enorme surpresa, descobre que um mistério muito maior do que era de se esperar está por trás de seus livros: alguém vem queimando metodicamente todos os exemplares de todos os livros de Carax. Um homem com cheiro de cinzas e de perfil assustador é o responsável pela destruição de toda a obra de Carax. Inclusive, o exemplar que Daniel tem em mãos pode ser o último existente.

Daniel logo percebe que resolver este mistério é essencial, pois ele e aqueles que o cercam podem ser imputados por histórias antigas e pendências do passado. Em “O Jogo do Anjo”, muito do que acontece em “A Sombra do Vento” ganha nova luz e perspectiva, mas Daniel Sempere e seu amigo Fermín retornam especialmente em “O prisioneiro do céu”, enfrentando o maior dos desafios até agora. “O Jogo do Anjo” é um espetáculo à parte e a mãe de Daniel é grande heroína da vez. A trilogia transborda intriga e emoção, e a “Sombra do Vento” não falha em nenhum aspecto, é a garantia de prazerosas horas leitura nas quais se apresentarão o valor da amizade, da coragem e da honestidade.


*A utilização da corrente filosófica citada é meramente ilustrativa, não chegando a tocar a profundidade da ideia da "Dialética do Esclarecimento".

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