Quando as Bruxas Viajam, Terry Pratchett




Bem vindos ao Discworld, uma terra de fantasia, mistério, inversões, crítica a certos modos de vida, ação, muita comédia e um refinado senso interpretativo da cultura e sociedade vigentes... Este é o décimo segundo livro da coleção, não leu os anteriores? Nada tema! O cenário fantástico construído por Terry Pratchett não considera cronologias.

Três queridas personagens sustentam este, que considero ser um dos grandes marcos da produção fantástica contemporânea; as bruxas Vovó Cera do Tempo, Tia Ogg e Margrete Alho esbanjam uma simpatia rara de se encontrar em personagens deste estilo. As três são a clara imagem das três faces da deusa do paganismo celta: a anciã, a mãe e a donzela, e usam de seus mais ardilosos artifícios para impedir o final feliz que a fada-madrinha Desiderata Hollow quer impor a qualquer custo.


A história poderia começar com algo como: Era uma vez um reino distante e encantado, onde tudo o que acontecia funcionava perfeitamente como nos contos de fadas. Porém, surge um problema: uma princesa não quer seu ex sapo/príncipe encantado... É aqui que começa a aparecer a genialidade de Pratchett, neste pequeno fato: uma princesa não aceita seu príncipe, por isso, ela foge e, para se esconder da ditadura da fada madrinha, consegue um emprego de servente, tornando-se uma Gata Borralheira. Aí começam as inversões, e na minha opinião a mais interessante delas é a que se refere ao uso da magia, que está presente no livro todo, mas que raramente serve para alguma coisa. Ao contrário dos feitos mágicos que garantem momentos exuberantes, na obra de Pratchett o ápice está na psicologia e nas formas alternativas de resolver os problemas.




Mas voltando à narrativa, a fada-madrinha está decidida a resolver o caso da princesa rebelde, afinal, neste mundo a fada-madrinha quer impor sua vontade, não realizar desejos; as pessoas não querem um final feliz, querem construir seus finais; as bruxas não pretendem dar cem anos de sono como presente, mas acabar com essa maldição. O grande problema é que ninguém tem poder para evitar que a princesa se case com o príncipe, forçada pela fada-madrinha, a não ser as bruxas Margrete Alho, Vovó Cera do Tempo e a Tia Ogg que, para chegar a solução, precisarão enfrentar muitas dificuldades, e o humor ácido de Vovó garante a leveza no enfrentamento de vampiros, lobos maus e... sim, casas que caem do céu.

Essa vasta referência a outros contos de fadas e literatura fantástica é desenvolvida durante a viagem das bruxas até o castelo da fada-madrinha, que mora a milhares de quilômetros do centro do Disco (um mundo achatado que descansa sobre quatro elefantes que, nas costas da Grande A’Tuin, uma tartaruga estelar, viaja pelo cosmo) é possível encontrar referências a Tolkien, aos Irmãos Grimm e mesmo a Charles Perrault além, e principalmente, de uma vasta referência sobre a sociedade atual, suas contradições, preconceitos, desmandos e incoerências. Todos esses elementos reunidos garantem uma história com perfeita consistência e reflexão sobre nossos paradigmas que, ao serem invertidos no Disco, se mostram como de fato são: fracos e contraditórios.

Pratchett é um verdadeiro mestre da fantasia e da arte de coletar referências e transformá-las em narrativas novas, envolventes e muitas vezes antagônicas à fonte original. Antes de J.K. Rowling consagrar os três bruxos adolescentes, este outro inglês já havia criado um mundo inteiro com o mesmo ritmo de aventura de Harry Potter, com o diferencial de ser muito mais profundo e de humor muitíssimo mais refinado, elegante e universal. É possível comprovar essa profundidade e qualidade literária na medida em que cada livro pode ser lido separadamente, sem considerar ordem cronológica ou algo que a valha, mas se lidos na sequência ganham certo sentido ainda mais interessante, somente superado pelas alegrias de ler a série aleatoriamente, onde são postas questões tão importantes quanto fazer as próprias escolhas como aparece em “Quando as Bruxas Viajam", como emancipação e escravidão, feminismo (que também aparece sutilmente neste 12° vol.), conceitos e preconceitos, entre outros.

Em suma, é uma história além dos paradigmas da literatura convencional, de muitos momentos atmosféricos que proporcionam teor e sentido à obra e que garantem diversão e reflexão em igual proporções. Esqueçam o “felizes para sempre”, façam seus próprios finais, sejam suas próprias bruxas ou fadas-madrinhas, construam e destruam. Se você é uma princesa e prefere fugir para encontrar seu próprio príncipe ou princesa encantadx, vá em frente. Se você é o príncipe, a possibilidade é a mesma. Se nada disso te agrada, crie...

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