Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente

O mesmo ano em que Lutero publicou suas 95 teses. Sabe o que isso quer dizer? Que faz muito tempo. Mesmo. Quando percebi que Auto da Barca do Inferno é um livro de 1517, me senti numa viagem maluca no tempo. Agora que voltei, posso dizer que foi uma viagem bastante curiosa.

O teatro de Gil Vicente. Me lembro perfeitamente do meu professor de literatura do ensino médio me falando sobre isso, sobre como a peça era cheia de alegorias e críticas sociais, repleta de sátiras e de moralidade. Vou pular essa parte (caso queira saber mais, procure um professor de cursinho parecido com o que tive), e dar mais atenção ao que senti durante a leitura, que por sinal foi bem rápida ─ questão de uma ou duas horas. Porém, desde a aula que tive lá atrás sobre Humanismo, fiquei com muita vontade de ler essa obra de Gil Vicente, talvez por gostar da ideia de pessoas sendo julgadas no purgatório.
"Primeiramente no presente auto se figura que no ponto que acabamos de expirar chegamos subitamente a um rio, o qual per força havemos de passar em um de dous batéis que naquele porto estão..."

A premissa é exatamente essa: um purgatório que consiste em um rio com dois barcos, um que leva ao paraíso, conduzido pelo Anjo, e outro que leva ao inferno, guiado pelo Diabo; diferentes personagens chegando e tendo seus destinos definidos, depois de conversarem com as duas figuras dicotômicas e tentarem convencê-las de que merecem ir para o céu. Por sinal, a maioria não tem sucesso, mas as figuras e seus argumentos são variados. Os diálogos desenvolvidos são muito interessantes ─ muito interessantes mesmo, são a essência do livro.
"O Moniz há de mentir?
Disse-me que com São Miguel
jentaria pão e mel
tanto que fosse enforcado.
Ora já passei meu fado
e já feito é o burel.
Agora não sei que é isso.
Não me falou em ribeira,
nem barqueiro nem barqueira,
senão ─ logo ao paraíso.
Isto muito em seu siso,
e que era santo o meu baraço.
Eu não sei que aqui faço:
que é desta glória emproviso?"
(Enforcado)

Informações importantes: (1) o livro é um auto, e isso quer dizer que é escrito para ser encenado em cima de um palco (afinal, estamos falando do teatro de Gil Vicente); (2) é também um poema dramático, o que foi novo pra mim (vale dizer que gostei da experiência de ler cantarolando); (3) como foi escrito em 1517, é claro que possui um linguajar bem distante daquilo que estamos acostumados, o que pode requerer um esforço e calma adicionais, embora não chegue a ser maçante.

Quanto ao conteúdo em si, algumas coisas me chamaram atenção. Não dá pra desconsiderar o contexto do texto, que foi escrito em plena Reforma Luterana e fala justamente sobre aspectos religiosos ─ isso é meio óbvio, o cenário da história é um purgatório. Está sim recheado de críticas à sociedade da época e isso é nítido, talvez até gritante durante a leitura. Mas o mais interessante é ver algumas construções; o Diabo, por exemplo, muito mais cômico, jocoso, até bem-humorado, enquanto o Anjo se mantém mais afastado e frígido.
"Quem reze sempre por ti?!...
Hi hi hi hi hi hi hi hi...
E tu viveste a teu prazer
cuidando cá guarecer
por que rezam lá por ti?!
Embarcai, hou! Embarcai!,
que haveis de ir à derradeira...
Mandai meter a cadeira,
que assi passou vosso pai."
(Diabo)

O que mais se destaca e que me fez pensar bastante é realmente aquilo que já tinha ouvido falar a respeito do livro: ele é atual. Pois é, mesmo 497 anos depois, o homem parece cair ainda no mesmo buraco. Algumas coisas talvez nunca mudem. Ambição, arrogância, ganância, cobiça. Talvez isso tudo queira dizer a mesma coisa, mas não importa, o que quero dizer é que o homem foi e será sempre assim, esgoísta. É uma conclusão meio triste, mas um ou outro ainda se salvam e conseguem convencer o Anjo de que o barco que deve pranchá-lo é o dele.
"Tu passarás, se quiseres;
porque em todos teus fazeres,
per malícia nom erraste,
tua simpreza te abaste
para gozar dos prazeres."
(Anjo)

Aprendi também grande variedade de sinônimos que o próprio Diabo pode dar ao inferno quando perguntado sobre o destino de sua barca: "vai pera a ilha perdida", "pera a infernal comarca", "ao porto de Lucifer", "pera o lago dos danados", "pera aquele fogo ardente, que nom temeste vivendo", "no inferno vos poeremos", "pera as penas infernais", "pera onde tu hás de ir".

A leitura é rápida e agradável, com alguns trechos mais complicados e outros mais fluídos. Foi novo pra mim ler imaginando as coisas acontecendo em cima de um palco, ao invés de num plano imaginário. No geral, Auto da Barca do Inferno me agradou bastante e atendeu as espectativas que eu tinha desde o professor pirado do ensino médio.

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