Dom Casmurro, Machado de Assis






Terror da responsabilidade de resenhar um clássico como “Dom Casmurro” à parte, eis minhas impressões da Magnum opus de Machado de Assis. 

Este é um romance realista, pareado com outras grandes obras do século XIX, como Madame Bovary ou Anna Karenina, que incidem de forma semelhante o amor, casamento e adultério. Mas a única semelhança estende-se ao tema e não à maneira como Assis (Machadinho, para os íntimos) lida com sua narrativa.

Quando um escritor escreve a partir da perspectiva de um narrador onisciente, ele cria a ilusão de que estamos lendo uma versão completa e justa dos acontecimentos. Mas é uma peculiaridade da narrativa em primeira pessoa que algumas das melhores e alguns dos piores romances usam. A técnica nos deixa querendo saber como soaria determinado enredo a partir da perspectiva de um personagem diferente.

Esta história em particular é narrada por Bentinho (o Dom Casmurro). Já perto do fim de sua vida, ele afirma que quer voltar à época da adolescência (“Quando eu era mais feliz”, ele diz), entremeando a narrativa com uma série de flashbacks. Ressalte-se o fato de que “Dom Casmurro” não possui estrutura linear, para a frente. Longe disso. Os capítulos são curtos (alguns, na verdade, apenas um parágrafo) e não necessariamente ligados uns aos outros pela ordem dos eventos, minando a habitual maneira de narrar com 'começo, meio e fim'. 

Bentinho é destinado por sua mãe devota a se tornar um padre, mas não sente nenhuma inclinação para o sacerdócio. Pela sua vizinha do lado, no entanto, ele inclina-se bastante – a manhosa, linda Capitu, com seus olhos de cigana oblíqua e dissimulada, olhos de ressaca –, e ela por ele. Um bom trecho a partir daqui é uma história de amor (quase!) convencional, com as tramoias de dois jovens amantes lutando para manter Bentinho em casa. Ele vai para o seminário, é fato, mas por pouco de tempo, e lá faz um amigo para a vida inteira: Escobar, que mais tarde se casa com a melhor amiga de Capitu, Sancha. Realmente não poderia ser mais bonita a história. 

Machado de Assis deve ter pensado que estava bonita demais. Açucarada demais. A escuridão começa a nublar o até então ensolarado “Dom Casmurro”. Bentinho passa a revelar seu lado ciumento, quase doentio, e um caráter cheio de falhas. A narrativa começa a reunir os elementos de uma tragédia à lá Otelo, e a partir desta transformação, o leitor é levado a questionar a confiabilidade da narração de Bentinho. Ele diz que a sua versão dos acontecimentos é “a verdade nua e crua”, mas logo admite a memória fraca, incapaz de lembrar até mesmo a cor das calças que usara no dia anterior. Uma vez que começamos a duvidar da veracidade da natureza de seu relacionamento inicial com Capitu, em seguida, abre-se campo à questão: ela realmente é uma adúltera? Estaria Bento imaginando coisas?

O protagonista frequentemente divaga a partir do relato de seu amor e sua trajetória para pontificar sobre a vida social brasileira ou remodelações ministeriais, acerca da escravidão, a necessidade de reescrever Otelo e viagens de trem. Bento é alguém que está inclinado a conversar sobre qualquer coisa que simplesmente apareça em sua cabeça, independentemente da relação com a sua história. 

À medida que a leitura de “Dom Casmurro” progride, fica a nítida impressão de que Bentinho – e Machado – foram convidando o leitor a entender que seu conto era uma complexa série de ilusões, que nada é realmente o que parece. Prepare-se, leitor, para fazer todos os gestos de incredulidade possíveis. Jogar o livro longe, se você é desses, e imediatamente pegá-lo de volta e retomar a leitura na mesma página, sem acreditar se o que Machado nos conta através de Bentinho é verdade. Tudo é possível aqui. 

Ao questionar a capacidade do narrador de transmitir os eventos que se destinam a serem apresentados na obra, chama a atenção também a forma como todo o processo de escrita de Machado é um grande artifício. 

Pernicioso. Intrigante. Dissimulado. Ao finalizar “Dom Casmurro” não se sabe ao certo que tipo de livro acabamos ler, o que é a verdade ou o que é mentira. Mas não restam dúvidas do quão agradável foi o passeio pelo qual Machado de Assis, com sua genialidade digna dos grandes mestres da literatura mundial, nos guiou.

Mas a pergunta que não quer calar mesmo é: Capitu traiu?

Pois bem, nos anos de benção e alegria do início do romance, Capitu escreveu na parede:

BENTO
CAPITOLINA

Mais tarde, depois de interrogar Bentinho sobre sua suposta devoção, ela rascunha no chão uma palavra: mentiroso.

De fato, “dissimulado” é adjetivo cabível para personagens e autor.

1 comentários:

 

BLOG HORRORSHOW - CRIADO E DESENVOLVIDO POR ARTHUR LINS - TODOS OS DIREITOS RESERVADOS © 2015