A República de Platão - Analisando o Livro I



Nem todas as questões que nos tocam são, essencialmente, problemas filosóficos. Muitas vezes, temos opiniões que partem de nossas convicções particulares e de nossas ideias baseadas na nossa vida mais ordinária, e isso é chamado de doxa (opinião). Na República, o que interessa para Platão é o que somos na cidade. Platão faz um movimento quase que contínuo de opinião ou doxa. A República trata de vários problemas; o primeiro deles é a Justiça, que começa com a ocorrência de uma festa religiosa. Sócrates sai do cenário público e parte para o cenário privado: a casa de Céfalo. Não é no ambiente da festa religiosa que se dá a discussão filosófica da questão da justiça; no espaço da religião reina o dogma, não a doxa (opinião). Para começar a discutir, é preciso que Sócrates vá para a casa de Céfalo, porém, a doxa está tão inserida na cultura grega que ela vai junto do pensamento filosófico. A ambição da filosofia platônica é construir um saber que não esteja vinculado à doxa, mas que se construa partindo, se preciso for, dela.

Seria como formular a pergunta "o que é a justiça?", e não "o que é a justiça para alguém?", retirando assim a posição meramente especulativa do objeto de análise. Sócrates vai percorrer um caminho que passa por indivíduos dialogantes. O primeiro deles é Céfalo, que responde à pergunta "o que é a justiça?" com uma narrativa sobre o envelhecimento do corpo e, com ele, o cessar das paixões, e então o alcançar da justiça mais perfeita. Céfalo parece representar a justiça tradicional, aquela mais apaziguadora, comum entre as pessoas de idade avançada, segundo a própria definição de Céfalo. Em seguida, ele dialoga com Polemarco, que faz menção a Simônides dizendo que o homem justo é aquele que faz o bem aos amigos e o mal aos inimigos. Naturalmente, Sócrates argumentativamente rejeitará essa premissa e convencerá Polemarco do mesmo.

Mas as disputas não se encerram por aí. Outra questão que aparece é a critica de Sócrates aos poetas, que serviam de certa forma como unificadores da polis e da religião (em nenhum momento constituída como no cristianismo moderno por exemplo), e que segundo ele eram construtores de falsas imagens de deuses e de heróis, e que ao fazê-lo destituíam o indivíduo de suas capacidades de reflexão. Se existe uma medida, essa medida é o homem, pois o homem é mensurável, e não os deuses que estão num campo além da compreensão e da análise de qualquer indivíduo, bem como os heróis, que se destacam pela maestria e pela técnica em alguma área, normalmente bélica. O ponto, em suma, é: poetas contam mentiras como verdades. 

O principal deste livro I, entretanto, é a discussão que se dá entre Sócrates e Trasímaco, que defende a tirania como “justiça levada ao campo das vontades do tirano”, pois, para ele, se a justiça não pode ser administrada no campo do coletivo, pelo menos no campo do individual ela pode. Quando diz: “para mim o justo não é outra coisa do que o que é conveniente para o mais forte”, Trasímaco apresenta o conceito anti-coletivo de justiça. Tal afirmação vai contra a proposta da obra de Platão, que é justamente esta saída do campo da individualidade para o da coletividade. 

Entre argumentações e refutações, Sócrates encara as proposições de Trasimaco, que se concentram fortemente nos argumentos políticos. Ao afirmar que a justiça é um “bem outrem”, que os justos perdem em relação aos injustos, fica aparente que a tese de Trasimaco não diz respeito ao conteúdo da justiça, mas somente da sua função. 

Sócrates tem que encarar essas defesas que Trasimaco faz à justiça do individuo e à injustiça como  a melhor forma de resolver os negócios e transações na polis. Suas construções utilizando da retórica fazem aparecer irônicas contradições na argumentação de seu interlocutor, que finalmente culmina em aporia, ou seja, os argumentos encontram contradições um no outro. No momento em que Trasimaco termina de apresentar suas idéias, ele faz menção de se retirar, no que é detido por Sócrates, que tece um fio de raciocínio com o qual Trasimaco é finalmente concordante. 

Platão é um mestre das palavras; joga livremente com a retórica, faz uso de linguagem poética (apesar de sua crítica aos poetas). Sócrates é a figura do filósofo por excelência, que se torce ao redor da exposição agressiva de Trasimaco até conseguir fazer com que seu interlocutor enxergue as contradições em sua fala. Reconstruir os argumentos de Sócrates neste pequeno texto seria impossível, por isso, a leitura da obra de filosofia que até hoje marca toda a nossa cultura é essencial para todos que tem o mais remoto interesse em filosofia, cultura, sociedade e nas influências do pensamento atual.

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